Reportagem de J. R. Rodrigues – especial para o Ver-o-Fato
Há um alto risco a considerar: Belém pode perder em definitivo a Fox, a última de suas locadoras de filmes e livrarias mais emblemáticas, que tornou-se um ícone multicultural e um verdadeiro símbolo da cidade. À primeira vista, somente a solidariedade e um engajamento sistemático do público que a frequenta de forma habitual podem evitar que feche as portas de vez – o destino de outros estabelecimentos históricos do segmento, como a Nossa Livraria, Ponto & Vírgula e Livraria Jinkings, por exemplo.
A causa no momento é a complicada situação econômica provocada pelo quadro sanitário do novo coronavírus. Todas as dificuldades que assolaram a Fox – que está às vésperas de completar 34 anos de fundação (em 13 de maio) – foram superadas com o conhecido espírito empreendedor e criatividade de sua direção. Ocorre que o “novo normal” vem minando as forças e assustando pela configuração de caos coletivo e de dimensões nunca antes experimentadas.
“A crise no mercado de livro iniciou-se em 2014, em paralelo ao crescimento do uso da tecnologia que os smartphones trouxeram, e isso levou os dois maiores grupos de livrarias do País [Cultura e Saraiva] a entrarem em recuperação judicial”, lembrou Anna Deborah de Miranda, 62, uma ex-acadêmica de Letras que divide a administração da empresa com mais dois sócios, o engenheiro civil José Antonio Rodrigues, 70, e Marcos Eluan Lima, 61, que abriu mão de se formar em Física. “Fomos nos aguentando como podíamos, mas com enorme dificuldades. Quando a pandemia iniciou, entramos em pânico pela possibilidade do fim da Fox, mas fomos levando”, relatou ela.
“Houve os programas de ajuda até o final do ano para os colaboradores, e mantínhamos o otimismo. Renegociamos algumas dúvidas e fomos tocando. Mas esse novo março desse ano veio como um tiro de misericórdia… Sem ajuda e com o lockdown, não tínhamos outra saída que não fosse pensar no encerramento da empresa. São muitas dívidas, e isso nos tira o sono e nos enche de vergonha diante dos fornecedores. Nunca vivenciamos esse acúmulo de contas a pagar”, explica.
De acordo com Deborah, como é mais conhecida no ramo livreiro e antes no de grandes videolocadoras, recorrer a empréstimos ou financiamentos bancários em busca de sobrevida seria uma temeridade devido às incertezas que envolvem o mercado. “Acho que seria loucura diante de uma nova onda [da Covid-19]. Sabemos que a pandemia ainda está aí, que tudo é muito novo no campo científico. Como dar continuidade a um projeto com empréstimos sabendo que podemos não pagar?”, questionou.
“Dor sem tamanho”
Resistir à atual conjuntura é visto mais que um desafio. “Falarei por mim. O que me sustenta nesses tempos difíceis é a minha fé. Creio que tudo o que vem do Alto tem um motivo, um propósito, e quem sou eu para questionar. Todos os caminhos são traçados por Deus. Eu apenas sigo a trilha enviada, de boa”, garante Deborah, que no entanto confessa o abalo recente ocasionado pela radicalização das medidas protetivas, ainda que prescrita como necessária pelos setores de saúde.
“Fiquei devastada nesse último lockdown, até porque havia acabado de perder a minha mãe. Mas me segurei na minha fé e sou impulsionada diariamente por ela”, afirmou. A empresária dá o tom do quanto não poder levar mais a Fox adiante significaria em sua vida: “Um filho criado com todo carinho e que morre é uma dor sem tamanho”.
Ela recorda que no enfrentamento de outros períodos difíceis, como o do advento da pirataria de filmes, foi possível reinventar o negócio e estabelecer inovações, entre elas a inserção de livros e a área de presentes e suvenires. No entanto, nada é comparável com a realidade vivenciada. “Sim, tivemos outras dificuldades. Mas sempre procuramos diversificar, redirecionar na medida do possível para o que o público pedia. Mas agora estamos falando de uma pandemia mundial”, lamentou ela.
Origem e foco
Em seu início, a proposta empresarial da Fox para a sociedade era ampla e bem clara: “Ser um local de cultura, de fomento ao conhecimento, às descobertas e às artes”, declarou a proprietária. “A Fox surgiu a partir de um acidente que me deixou quase um ano em uma cama. Pensava e repensava o que gostaria de fazer. Ainda em recuperação, fui levada à ‘Mister Movie’, antiga locadora de filmes de um amigo de infância, o Antônio Mokarzel, que perdemos ano passado para a Covid. Eu dizia a ele que ia montar um negócio igual, e assim foi. Iniciamos em 13 de maio de 1987”, disse Deborah.
Ela revelou que houve duas razões para a escolha do nome: “O primeiro filme que vi em cinema na minha vida foi ‘A Noviça Rebelde’, da [então 20th Century Studios] Fox, e o jingle ficou para sempre na minha memória. O segundo motivo foi porque, antes de ela existir, trabalhei em uma agência de viagens no tempo do telex, e só havia telefone de teclas. Meu ramal era o ‘F’, e como se usa sempre o alfabeto internacional de aviação, quando tocava o telefone no meu ramal e eu atendia, alguém dizia: ‘Fox’? Telefone!”, diverte-se Deborah.
Instada a falar sobre suas melhores lembranças do trabalho, ela demonstra não ter perdido o humor. “Você teria quantas ‘laudas’ para eu responder essa? Eu tinha 28 anos quando começou, hoje tenho 62. Precisa dizer mais alguma coisa?”
Novas atrações
A Fox desses tempos, com a livraria, café e papelaria, – como está grafado na fachada do estabelecimento pós-repaginagem – chegou a ter sete lojas em Belém e Ananindeua, como em espaços de shopping, supermercado e postos de gasolina, e 135 colaboradores – atualmente restam dezoito. Hoje só ficou uma loja, na Travessa Dr. Moraes, em Batista Campos, um dos bairros mais aprazíveis da capital do Estado.
Em sua sede, além do famoso gato “Pierrot”, que tem cerca de 15 anos, circula normalmente no salão e está acostumado a interagir com clientes, o serviço de locação nas mídias em DVD e Blu-ray continua, mas já não é o carro-chefe – a tecnologia e as diversas opções de streaming obrigaram a venda da maioria do acervo, que segue em comercialização.
Com o passar do tempo, ficou evidente que a Fox teria de se adaptar às tendências para seguir com o funcionamento ofertando opções a um público que soube cativar. “A venda de livros começou em 2004, quando passamos a matriz da [Travessa] Benjamin [Constant] para a Dr. Moraes”, explicou Deborah Miranda. “O Café iniciou no mesmo momento, embora pequenino, com atendimento no balcão e duas mesinhas. As atividades para o público infantil iniciaram em 2005 e só foram suspensas ano passado, com a pandemia. Presentes foram em 2006, e, em seguida, a papelaria. A Sala Clarice começou em 2015, e com ela cursos, eventos como lançamentos, palestras e encontros de poesia e literatura”.
Ela observou que a Feira Literária do Pará (FliPA), que contribuiu decisivamente para divulgar novos e consagrados autores do Estado, começou em 2014, sendo a mais recente, a sexta edição, realizada em 2019. “Sem planos para retomar enquanto a pandemia estiver entre nós”, avisou Deborah.
A união faz a força
Nessa semana, uma proposta de mobilização dos “amigos da Fox”, a partir de uma postagem em rede social do conhecido jornalista e escritor Edyr Augusto Proença, assíduo frequentador do local, “viralizou” e criou campanhas que estão surpreendendo por gerar forte movimento de clientes, os quais aderiram à ideia de ajudar a razão social considerada uma verdadeira instituição cultural e patrimônio de Belém e do Pará. Os “amigos” vêm abraçando a causa, fazendo compras, motivados também pelo Dia das Mães. “Não estou conseguindo atender os contatos pelo Instagram”, disse Vânia Eluan, que também pertence ao setor administrativo da Fox.
Deborah Miranda disse ter ficado tocada pela demonstração de carinho dos clientes e amigos. “Absoluta surpresa. Sabemos que a Fox é querida e que faz parte de muitas histórias de vida dos nossos frequentadores, mas fomos maravilhosamente surpreendidos com tamanho afeto”, confessou, revelando não alimentar esperanças de alguma ajuda além da que vem a partir da sensibilidade da clientela. “O público já estão ajudando! Nada mais a pedir, somente e eternamente a agradecer!”, enfatizou.
Esperança
A Fox, de fato, voltou a ter bom movimento comercial diário em suas instalações. Boa parte dos clientes revelou em entrevista a este portal que atende ao apelo de adquirir algum item, em especial livros, para não deixar o espaço sob a ameaça de parar de funcionar. O consenso geral é pela defesa e prática de uma ação permanente. O saudosismo e a emoção, a partir das lembranças de muitos anos de visitas que criaram identificações bem particulares, tomam conta das pessoas.
Veja abaixo alguns relatos.
• Liliane Tachy, 29, advogada
“Eu frequento a Fox desde os meus dez anos. Meu pai, Freud, que é engenheiro elétrico, me trazia aqui. Acompanho a Fox pelo Instagram e vi a notícia de que pode fechar. A gente sabe que vários lugares estão fechando durante a pandemia, e a Fox é um lugar muito importante nos corações dos paraenses. Aqui cheguei a comprar várias fitas [cassetes], depois DVDs, agora livros. É um local que foi sobrevivendo ao tempo, está sempre se renovando e merece o nosso carinho e a nossa atenção. É um símbolo do nosso Estado, né? Faz parte da nossa cultura! Muitas pessoas, há muitos anos, cresceram frequentando esse lugar. A gente tem de dar essa força. Os paraenses têm de se unir!”
• Marina Silvestre, 15 anos, estudante do 8º ano
“Tenho um certo receio de que a Fox feche. Belém quase não tem bibliotecas ou livrarias, fora a dos shoppings. Aqui não temos somente livros. Gosto daqui até por causa do gato [Pierrot], que é famoso. Ontem [quinta-feira, 6 de maio, data da entrevista] foi o meu aniversário, e vim comprar este livro, achei interessante [mostra o volume inicial de “Desventuras em Série”, da editora Seguinte]. Não moro na cidade, mas em Cotijuba, estou na casa de minha avó. Vim aqui há três meses, gosto bastante.”
• Clara Silva Lima, 22, acadêmica do curso de Artes Visuais
“Fiquei sabendo da possibilidade de a Fox fechar, acho que pelo Facebook, alguém me mandou a matéria. Fiquei arrasada. Falei pra minha mãe, que sempre vem aqui, ela é superfã. A gente, pelo menos uma vez por mês, vem comprar um livro, um para cada filha. Não moro em Belém, sou de Marabá [município da região sudeste do Estado], e toda vez que venho à cidade tento vir aqui sempre porque para mim a Fox é a melhor. Ela não tem só livros comerciais, mas de artistas daqui. Acho muito importante porque é muito raro ter autores do Pará.”
• Cynthia Ayan, 41, funcionária pública
“Frequento a Foz desde os meus 12 anos, quando era na [Travessa] Benjamin [Constant] a [loja] principal. Ou melhor, só havia uma, e era uma locadora apenas, não livraria. Lembro que meu pai comprou um videocassete e aí os passeios do fim de semana eram ir até a Fox para alugar fitas cassete. Tinha o rebobinador, a gente tinha de devolver cada fita rebobinada. Sempre fui muito aficionada por filmes, então começou essa paixão nessa época, há mais de 25 anos, quase 30 anos. Tenho uma identificação muito forte com a Fox, que é mais do que uma livraria: ela virou um patrimônio cultural da cidade.
Fiquei muito triste ao saber desse risco de fechar. A gente sabe que o mundo inteiro está enfrentando dificuldades por conta dessa pandemia, e os empresários mais ainda por causa das medidas de afastamento, os lockdowns que foram feitos. Seria uma grande perda para a sociedade paraense, para Belém, principalmente.
As livrarias não têm condições de competir com as livrarias on-line, com uma gigante como a Amazon, que consegue vender milhões e milhões de livros muito mais baratos. Seria uma tristeza perder a Fox. Nós já perdemos a parte da locadora, que é aquela coisa de vir locar o filme, devolver, e perder a livraria também seria muito triste porque nós já temos, além da Fox, apenas duas livrarias, que seriam a Saraiva, no Boulevard, e a Leitura, no Pátio Belém. Está cada vez mais difícil ter um ambiente como a Fox, em que se pode sentar, folhear um livro, tomar um café. Eu acho que Belém está muito carente para ainda perder essa via cultural.
Lembro que na Fox tinha uma roleta, uma ‘borboleta’ como a gente chama aqui em Belém. Era na entrada. A gente entrava por um lado e saía pelo outro. Recordo até do nome do rapaz que me atendia – era o Cid. Toda vez a gente falava: ‘Cid, o que tem de lançamento?’. Ele já separava. Eu tinha aquele número da matrícula de sócio.
Sou muito nostálgica. Acho que a modernização é muito legal, a internet e tudo, trata-se de um movimento que não tem como voltar atrás, não tem como separar, mas também a gente perdeu muita coisa. A gente perdeu ir até a locadora, locar um filme como antes. Havia umas promoções: ‘Leve seis, pague cinco, devolva só na terça-feira’. Isso fazia locar mais filmes, e as coisas eram mais calmas, mais tranquilas, hoje é tudo muito rápido. Você já tem que baixar o filme, tem o streaming. Fica-se bombardeado de informações. Antes era uma coisa mais romântica.
Você via e pensava ou falava: ‘Ah, quando isso vai chegar à Fox?’. ‘Ah, ainda não chegou, estamos esperando pra semana que vem’, nos diziam. Isso se perdeu. A gente tem perdas e ganhos com as evoluções da vida. Infelizmente a modernidade, a questão da tecnologia, veio e atropelou esse segmento. Com a pirataria, as pessoas começaram a não comprar mais CDs, DVDs. Foi uma época muito triste, de uma pobreza muito grande.”
Discussion about this post