Quando cheguei, como professor, à UEL-Universidade Estadual de Londrina, pela primeira vez, acabara de produzir, num só ímpeto, um texto, a que intitulei de Carta de Nando.
Escrevê-lo fora algo que me havia sido imposto por um impulso visceral de homenagear Fernando Guimarães, colega jornalista brilhante, com passagem pela Realidade.
Como todos sabem, nesta publicação foram veiculadas muitas das mais extensas, criativas e inovadoras reportagens impressas da História do Jornalismo Brasileiro.
Para a revista, Fernando chegou a escrever um relato do dia a dia numa comunidade hippie dos Estados Unidos.
No entanto, na psiquê dele, provavelmente, já estivesse presente um tipo de sentimento espraiado por muitos de nós, jovens daquela geração.
Aquele sentimento que nos empurrava em direção à morte.
Um fenômeno sócio-histórico que posso apenas supor -, em âmbito mundial, de algum modo estivesse relacionado ao desânimo provocado pelos conflitos da Guerra Fria, capaz de provocar uma matança estúpida de crianças e adolescentes no Vietnã.
E que, em âmbito doméstico, provavelmente se ligasse a um certo desespero, criado em todos nós, pelo sacrifício das vidas dos estudantes guerrilheiros, em combate à Ditadura Militar.
Àquela altura, decidir morrer na juventude era algo como foi o gesto tomado, há poucos dias, por um soldado, de 25 anos de idade, de atear fogo ao próprio corpo, numa recusa de sua incorporação às tropas que estão matando palestinos.
Também, para nós,o autoextermínio, naquele momento, se constituía numa espécie de recusa generosa e altruísta à adaptação a um contexto sócio-econômico-político, que julgávamos apodrecido pela ganância, pela vulgaridade, pela estupidez de quem, então, detinha o comando do mundo.
Fernando fez isto.
Matou-se, no vigor de seus anos, plenamente dotado de sua inteligência aguda, assim como de suas habilidades como jornalista.
Desapareceu, para nós, como outras pessoas que amávamos e encontraram uma forma de se recusar a viver: Che Guevara, Jimmy Hendrix, Jane Joplin, entre outras.
O suicídio de Fernando me alcançou num momento de retraimento.
Estava instalado num hotelzinho perto da Folha de São Paulo, em São Paulo, onde tinha aceitado um emprego de revisor. Mal remunerado, mas com horário fixo de trabalho, o que me permitia cursar Letras.
Foi, ali, no hotelzinho modesto, habitado, sobretudo, por prostitutas e cafetões em momentos de repouso, que fui tomado por uma vontade compulsiva, instantânea, de tentar exprimir, para torná-la visível, aquela nossa inclinação para uma morte que julgávamos impregnada de grandeza e poesia.
Não à toa, Paulo Bacha, psicanalista admirável, disse que queríamos poetizar a morte.
O texto saiu de mim de uma vez só, como golfada de bebê saciado. Parecia que seu conteúdo já preenchia meu espírito havia muito tempo e precisava apenas do gesto de Fernando para transbordar.
Fiquei completamente esmagado por um sofrimento agudo, enquanto escrevia.
E, terminei tendo um choro profundo, convulsivo, como, ao longo de toda minha vida, só tive mais uma vez, quando meu pai morreu.
Naquele instante, estava escrevendo este trecho da carta:
“Aquilo que matamos num suicídio não é a vida, presente maravilhoso da natureza. A gente mata o vilipêndio a que somos forçados para sobreviver, inquietos com a intuição de que a vida não deveria ser assim”.
Guardei o texto por muitos anos. Esqueci-me dele, provavelmente pela lembrança de dor que continha.
Anos depois, quando, pela segunda vez, me vi na UEL, contratado para lecionar no Curso de Jornalismo, senti necessidade de dispor de algum material que, em sala de aula, me ajudasse a alimentar, nos alunos, uma reflexão a respeito do sentido da vida.
E percebi que a Carta de Nando era perfeita para me auxiliar naquilo.
Depois disto, por anos a fio mantive o apelo àquele texto.
Sempre que via meus alunos precisando pensar sobre suas próprias existências.
Estivéssemos em São Paulo, em Belém, no interior da Amazônia, ou, no Pantanal.
- Owaldo Coimbra é escritor e jornalista