Após devorar um prato de maniçoba, Apolo Brito foi para a rede na varanda do segundo andar da casa, de onde podia ver o quintal do Parque da Residência. A vinte dias daquela segunda-feira, 11 de outubro, ocorreria o segundo turno das eleições. Caso o senador Fonteles morresse, o governador seria Jarbas Barata. Se o senador Fonteles ganhasse as eleições, Jarbas Barata e toda a cúpula da sua máfia sabiam que seria seu fim. E mesmo que não ganhasse, Fonteles continuaria sendo inimigo poderoso como senador da República e com seu prestígio internacional; ele não daria trégua à máfia de Jarbas Barata. A equação era simples.
Apolo Brito examinou a planilha de campanha do senador, que fora dissuadido pelo seu médico particular, o clínico geral Alexandre Melquíades, uma das grandes infiltrações da Confraria Cabanagem na casa do senador Fonteles, a se concentrar, naqueles 20 dias finais de campanha, em Belém, e deixar os outros principais colégios eleitorais por conta dos seus coordenadores locais. O dr. Alexandre Melquíades era, de fato, o conselheiro político mais próximo do senador Fonteles, e, como tal, o coordenador da campanha, num colegiado que incluía dona Eleonora, Juliane e Gilberto.
Com efeito, a agenda do senador em Belém exigia que ele não se afastasse da cidade nenhum dia mais. De Belém, ele podia alcançar todo o estado, principalmente via rádio. “Quem o matará? E como?” – matutava Apolo Brito. “E o que fazer? Sim, o que fazer? O detetive estacou. “Espera, ele tem um compromisso fora de Belém, em Soure. Claro, é a terra natal dele, e será no dia 21 de outubro, uma quinta-feira. Um encontro internacional de militantes ecológicos. Soure é a chave” – pensou, preparando-se para ler o material que Montezuma Cruz lhe entregara.
Alguns trechos chamaram-lhe a atenção, como o artigo de Ilma de Camargos Pereira Barcellos, graduada em Administração pela Faculdade Cândido Mendes (Vitória-ES) e em Direito pelo Centro Universitário Vila Velha (UVV), advogada militante. Trecho do artigo: “Não é de se estranhar que a OMC tenha como pauta de discussões o comércio mundial de águas, pois se trata de um serviço essencial à vida, altamente lucrativo nos últimos anos.
“Criada para abrir mercados, eliminar barreiras tarifárias e não tarifárias, assegurar o “livre fluxo de capitais”, a Organização Mundial do Comércio administra regras comerciais internacionais, dentre elas o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), que define as águas naturais ou artificiais e águas gasosas como sendo uma mercadoria negociável e, por assim ser, “o Artigo XI (…) proíbe especificamente o uso de controles de exportação para qualquer propósito e elimina as restrições quantitativas sobre importações e exportações.
“Isto significa que se um país rico em água impusesse uma proibição ou até mesmo uma cota sobre as exportações de água em grande volume por razões ambientais, essa decisão poderia ser questionada sob a ótica da OMC como uma medida comercialmente restritiva e uma violação das regras comerciais internacionais” (Barlow e Clarke, 2003, p. 199).
“De olho nesse mercado lucrativo, a OMC não está sozinha. O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial também estão se mobilizando para o desenvolvimento de políticas de obtenção de lucro com a água. Em 1998, o Banco Mundial já previa que o comércio de água brevemente alcançaria um lucro de 800 bilhões de dólares. Antes de 2001, a projeção foi elevada para 1 trilhão de dólares, uma vez que, na ocasião, apenas 5% da população mundial recebiam água das transnacionais (Barlow e Clarke, 2003, p. 125).
“As grandes corporações transnacionais perceberam que comercializar água é uma atividade altamente lucrativa, conforme declara Gerard Mestrallet, superintendente da Suez: “(…) A água é um produto eficiente. (…) É um produto que normalmente seria gratuito e nosso trabalho é vendê-la. Mas é um produto absolutamente necessário à vida”.
Em função dessa necessidade humana e da lucratividade, a Associação Norte-Americana de Livre Comércio (Nafta) e a OMC já declaram a água uma mercadoria negociável, classificando-a como um bem comercial, um serviço e um investimento. Isto significa que se um governo proibir a venda e exportação de água em grande volume ou impedir uma corporação de água estrangeira de participar de licitação de concessão para o fornecimento de serviços de água, poderá ser tido como violador das regras comerciais internacionais, a não ser que consiga justificar-se dentro da permissibilidade de medidas de caráter ambiental”.
Apolo Brito continuou a leitura atenta de alguns trechos do material colhido de várias publicações. Relatório de 2004, encomendado pelo Pentágono à Global Bussines Network, empresa especializada em tendências de negócios, baseada na Califórnia, e revelado pela jornalista Memélia Moreira, da Agência Amazônia, considera que as potências estrangeiras, especialmente os Estados Unidos, não descartam captar água da bacia Amazônia, principalmente do rio Amazonas, à bala.
Segundo o jornalista Lúcio Flávio Pinto: “Estima-se que 1,5 bilhão de seres humanos já não disponham de água suficiente para suas necessidades essenciais. Significa que de cada 5 habitantes da Terra um não tem água nem para beber. Esse contingente, que é superior à população do maior de todos os países pelo critério demográfico, a China, vai precisar resolver esse problema vital de alguma maneira. Pela via pacífica ou através da força. A próxima guerra será pela água, anuncia um número crescente de profetas, baseados mais na correlação lógica de fatores do que numa análise minuciosa e específica das situações.
“Este é o mesmo método que utilizam para apontar o sítio dessa próxima guerra: a Amazônia. Nada mais lógico: a bacia amazônica, que se espraia por nove países da América do Sul, mas tem dois terços das suas águas drenadas no território do Brasil, representa 68% da massa de água doce superficial do nosso país e de 8% a 25% (conforme as diferentes avaliações) do total do planeta.
“Com uma área de 7 milhões de quilômetros quadrados, é 10 vezes maior do que toda a América Central. Sua principal riqueza ou está escondida no subsolo, em depósitos de minérios, vários deles já em exploração ou mesmo exauridos, ou na sua floresta tropical, um terço do que ainda existe dessa mata primária sobre a superfície terrestre. E a mais rica em biodiversidade. Um tesouro difícil de ser protegido, sujeito a todas as formas de roubo”.
OEstado de S.Paulo – Hidropirataria na Amazônia, um delírio, por Antonio Felix Domingues, coordenador de Articulação e Comunicação da Agência Nacional de Águas (ANA):
“Há anos o fantasma da hidropirataria ronda cabeças no Brasil. Embora seja contada como uma história quase policial, a hidropirataria é um delírio que, em vez de contribuir para maior valorização da água, acaba desviando a atenção de problemas reais, como a insuficiente cobertura da rede de água tratada para as populações amazônicas, o índice mais baixo do Brasil.
“A história, tema recorrente na mídia, conta que grandes navios-tanque vêm até o rio Amazonas, ora próximo a Manaus, ora na sua foz, para roubar água do território brasileiro e levá-la para países sedentos. À primeira vista, a hidropirataria nos revoltaria e teríamos, evidentemente, de tomar providências contra a atividade. Entretanto, essa história não encontra fundamento, posto que as leis da economia, de forma indistinta, regem os interesses de todas as atividades comerciais.
“Em valores atuais, 1 m3, ou 1 tonelada de água, custa entre US$ 0,25 e US$ 0,50 por dia para ser transportado em navios de grande porte para granéis líquidos. Qualquer viagem para um dos chamados “países com sede”, localizados no Caribe ou no Oriente Médio, por exemplo, demoraria vários dias, ao que se impõe uma realidade importantíssima: o custo da água atingiria valores superiores a US$ 3 por m3 para uma viagem de 10 dias a 13 dias, mais os custos de tratamento para torná-la potável, ao redor de US$ 0,40/m3.
Esses valores nos mostram a impossibilidade do comércio mundial de água bruta para abastecimento público utilizando-se o transporte marítimo, porque os custos do frete de granéis líquidos tornam a atividade inviável em distâncias superiores a 500 km. “A realidade que está resolvendo a sede dos países é a dessalinização e o reuso, que, com tecnologia e escala, operam a custos cada vez menores.
Em Israel, três plantas dessalinizadoras (Ashkelon, Hadera e Sorek), no modelo de parcerias público-privadas (PPPs), fornecem água potável a 3,5 milhões de pessoas a um custo médio de US$ 0,60/m3. Dessa maneira, Israel, dentro de alguns anos, não vai mais comprar água da Turquia, o único caso conhecido de transporte de água em navios-tanque e que, apesar da distância de apenas 600 km, está perdendo toda viabilidade econômica.
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