Com o pai sofrendo em casa de grave doença incurável, desde quando ele tinha sete anos, Vadinho foi criando irresistível atração por um mundo que a mãe dele, dona Áurea, denominava genericamente de “a rua”, onde ela não queria ver o moleque, pois nele estaria sem a segurança que tinha perto dela. Mas, era ali, naquele mundo, onde Vadinho se sentiu livre, desde os 10 anos de idade, de certa opressão permanente que o atingia dentro do ambiente familiar.
Livre da opressão, ele ficava disponível para os prazeres que o atraíam longe daquela casa instalada numa estreitíssima rua dos anos de 1600, quando foi preparada para o trânsito de carruagem, com o nome de Rua da Alfama, na Cidade Velha, o mais antigo bairro da cidade de Belém. Antes, a rua fora também chamada de Santarém, em homenagem ao orgulhoso município do Pará localizado na confluência dos rios Tapajós e Amazonas. Cujos habitantes ao longo dos 363 anos de existência da cidade deles jamais deram aos belenenses o prazer de vê-los admitir que poderiam viver melhor em Belém do que em sua urbe. Depois,a rua ganhou o nome do médico intendente de Belém, nos anos de 1920, Rodrigo dos Santos.
Naquele endereço e debaixo da vigilância de dona Áurea, a operação de fuga da casapor Vadinho ganhava certa complexidade. Pois, como sempre se movimentava dentro dela descalço, bastaria aparecer calçado diante de dona Áurea para que ela logo deduzisse qual intenção ele tinha. Diante disto, Vadinho escondia os sapatos atrás da porta de entrada, deixava a porta entreaberta, pulava para a rua por uma das duas janelas da casa.
Depois, cuidadosamente, esticava um bracinho através da abertura da porta e apanhava o sapato. Isto tudo num momento em que percebesse uma ligeira desatenção de dona Áurea sempre concentrada no trânsito dos familiares pela porta de entrada. Para controlá-lo,enquanto preparava roupas para seus oito filhos, ela colocava sua máquina de costura num ângulo estrategicamente favorável a seu empenho de evitar a evasão de Vadinho. Contudo, o ângulo de visão que ela tinha não alcançava as janelas.
Claro, a operação de fuga de Vadinho se tornaria menos complicada sem a necessidade de levar com ele os sapatos. Ocorre que era imprescindível para ele o transporte dos sapatos. Pois, sem eles, uma parte importante do fascínio do mundo encantado da “rua” ficaria quebrado, já que excluiria a possibilidade de entrar no Cine Guarani, o pequeno cinema do bairro. Modesto, a casa de espetáculos, porém, não transigia: só entrava nela quem estivesse calçado.
Mas, embora isto lhe causasse alguma complicação na sua fuga de casa, Vadinho caprichava no atendimento daquela exigência. Não só calçava os sapatos, como, antes, também punha as meias que esmagava nos fundos dos bolsos da calça, para que dona Áurea não desconfiasse de nada. Tanto gostava de assistir às chanchadas com Oscarito, Ankito e Grande Otelo, aos filmes do Zorro e da Lassie, aos desenhos animados de Walt Disney.
*Oswaldo Coimbra é escritor, jornalista e pesquisador.