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Era esperado que em minha vida de repórter eu não tivesse vida fácil com os militares que governaram o Brasil durante 21 anos de ditadura. Com Jarbas Passarinho, falecido no final da semana passada, não foi diferente. Ele cruzou meu caminho, no início da profissão, por volta de 1974. E de maneira inusitada. Em “A Província do Pará “, fui escalado por Rubens Silva, então chefe de reportagem, para entrevistá-lo. Peguei meu gravador de cima da mesinha de repórter e rumei para o local da entrevista, a sede da Arena, partido do governo.
Nunca tinha ficado frente a frente com aquele homem que diziam ser ao mesmo tempo um linha dura e um intelectual. Eu pensava: como alguém pode ser as duas coisas numa só pessoa, se o trato com as letras torna o homem mais sensível e disposto a encarar o contraditório? Passarinho me recebeu com certa desconfiança e pediu que a entrevista não se prolongasse, porque tinha outros compromissos em Belém e no interior do Estado naquele dia.
Liguei o gravador e ele, meio surpreso com o fato de a entrevista ser gravada, perguntou-me se não confiava no bloco de anotações e, principalmente, na memória. Respondi-lhe que confiança eu tinha, mas a gravação seria para que nem eu, nem ele, corrêssemos riscos de distorções na reprodução e posterior publicação da entrevista. Ele apenas sorriu, dizendo ironicamente “pois então, vamos ao sacrifício”.
Terminada a entrevista – o gravador era daqueles em que se usava a fita cassete e tinha tamanho quase descomunal, porque não cabia no bolso, como os microgravadores de hoje – voltei para a redação do jornal e ao sentar na banca para escrever, enquanto botava o papel na máquina datilográfica, o Rubens Silva, perguntou como tinha sido o encontro. Respondi que tinha sido bom e que Passarinho não tinha fugido de nenhuma pergunta. “Olha lá, hein”, brincou Silva”. Vim a entender depois aquela cautela do chefe de reportagem.
O suplente de Passarinho no Senado era ninguém menos que Milton Trindade, o diretor-presidente dos Diários Associados (grupo de comunicação nacionalmente comandado por Assis Chateaubriand) no Pará, ou seja, o chefe do meu chefe na “Província do Pará”. Onde eu tinho ido parar e com quem estava me metendo? Pior do que aquela responsabilidade de editar do gravador as coisas mais importantes que Passarinho falara a mim na entrevista era saber que minha permanência no jornal, de certa forma, seria também condicionada, ainda que não intencionalmente, à repercussão que as declarações dele viessem a ter junto aos leitores, principalmente à direção da empresa.
“A Província”, embora fosse uma escola de jornalismo para quem lá trabalhava ou sonhava, de fora, encarar a profissão, era acima de tudo um jornal de conveniências políticas. Apoiava o regime militar e o governo, algo que, naqueles tempos, era uma coisa só. Se eu fosse parar e pensar nisso, era melhor desistir do jornalismo. Aquilo, afinal, não era coisa para fracos. Ainda mais numa época de censura às liberdades e ao direito de opinar. Além disso, aquilo era um desafio para mim.
O menino pobre, nascido no bairro da Matinha (hoje, Fátima) e com uma deficiência física na perna direita produzida por sequela de poliomielite, que adorava rock, jazz, cinema, e havia lido os clássicos da literatura universal antes dos 17 anos, não iria desistir do jornalismo por nada.
O medo, na verdade, tomou conta de mim na hora em que liguei o gravador para começar a ouvir a entrevista do coronel, anotar os trechos mais importantes para construir o texto e, depois, finalmente, começar a escrever. Tremi nas bases. O gravador nada tinha gravado. As pilhas haviam acabado sem que eu tivesse percebido. Havia apenas um pequeno trecho gravado, coisa de não mais que dois minutos, mas ainda assim distorcidos, pois a gravação era fraca, devido as pilhas estarem no final da vida útil.
E agora, o que fazer? A entrevista estava viva, fresca na memória. Pensei: sabe de uma coisa, vai ser assim, não tem jeito. Venci o medo, encarei a folha de papel em branco na máquina e mandei ver. Concentrado, sem ligar para as brincadeiras costumeiras numa redação de jornal, com piadinhas e bolinhas de papel atiradas contra mim – “foca” de jornal é o ser mais perseguido do mundo – coloquei tudo o que veio à mente sobre o que Passarinho me dissera.
É claro que ninguém é de ferro para não se abalar com a possibilidade de cometer erros de memória, sacrificar a carreira que tanto sonhara no jornalismo, por ter tido a má sorte de bater de frente com o homem mais importante do regime militar no Pará naqueles tempos sombrios. Voltei para casa e durante a noite, enquanto o jornal rodava sua edição do dia seguinte na oficina, fiquei pensativo pelo alto risco que assumira de reproduzir uma entrevista que poderia significar o fim de uma carreira que mal começara.
Mal dormido, cedo eu já estava no jornal, antes mesmo da chegada dos outros repórteres e fotógrafos. Com a edição impressa diante de mim, a entrevista com Passarinho tinha chamada de primeira página e uma foto dele, no destaque. Li e reli aquilo. Senti calafrios. Será que era aquilo mesmo? No meio da manhã, o superintendente dos Diários Associados, Roberto Jares Martins, surgiu na redação e pediu que eu fosse à sua sala. “Ih, é agora, o bicho pegou, tô f….”, pensei. Na sala já estava o dr. Milton Trindade, que nem levantou a cabeça para me olhar.
Jares foi direto: “Mendes, o senador Passarinho está aqui ao telefone e quer falar contigo”. O mundo estava prestes a desabar, para mim. Eu estava apreensivo, quase indo ao desespero, mas me esforçava para não demonstrar o que sentia diante daqueles magnatas da imprensa local.”Como vai?”, perguntou secamente Passarinho. Respondi, quase murmurando, sem convicção: “vou bem”. E, sem nada mais a dizer, arrisquei: “e o senhor?”.
E Passarinho, em cima da lata: “olhe, pedi ao Jares para falar contigo e te dizer que minha entrevista ficou muito boa”. Fiquei ouvindo aquilo e dizendo por dentro “graças a Deus”, mas ainda a tempo de ouvir o arremate fulminante e irônico do senador : “até coisa que não falei tu publicaste, mas ficou bom”.
Escapei por pouco. Ninguém do jornal nunca soube que o gravador houvera falhado quando mais precisei dele. Daí em diante, quarenta anos depois, nunca mais esqueci a lição que impus a mim mesmo: pilha nova, sempre, no gravador. É bom para o entrevistado, o entrevistador e também para a sanidade dos nervos. Ninguém jamais poderá dizer que não disse o que está publicado. A gravação é a prova do repórter.
Passei no teste de memória na entrevista com Jarbas Passarinho. Mas podia ter sido reprovado. E sepultado a profissão que tanto amo.
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