Apresentador, morto aos 93 anos, criou a linguagem de uma emissora que traduziu brasileiros por seus afetos e sonhos
Henrique Artuni – colunista da Folha de São Paulo
Como maestro do SBT, Silvio Santos, morto aos 93 anos neste sábado (17), conseguiu um epíteto que pode parecer grandioso —fez a televisão da família brasileira. Algo difícil num Brasil de tantos Brasis. Mas sua figura, seu carisma e tino para os negócios orquestraram o visual e a linguagem de uma emissora que traduziu os brasileiros por seus afetos e sonhos, refletidos em caóticos programas de auditório, atrações e novelas infantis, sorteios, doações, jogos angustiantes e no humor —intencional ou involuntário.
A emissora atendeu a um público que, entre suas várias acepções, se confunde com aquele modelo do século passado —aquele que hoje chamam “família de bem”, com suas indiscretas penetrações no poder—, mas também com aqueles que nada tem com isso: trabalhadores, gente simples e caseira que se satisfaz com os grandes sucessos de hoje e de outrora em seu tempo livre.
Talvez uma família mais latino-americana do que aquela da utopia carioca forjada pela Globo, e que Silvio Santos não tinha interesse em replicar ou representar. Uma família —mais ligada às terras paulistas, em geral— que não rejeita o “kitsch”. Ou melhor, que vê o “kitsch” como um exagero natural.
Do Roda a Roda à Tele Sena, passando pelo Pião da Casa Própria, “Chaves” e “Carrossel”, Ratinho e Casos de Família, Silvio ergueu uma Torre de Babel de realidades sociais, não raro dramatizadas ou importadas, mas reais para o brasileiro em diferentes medidas.
Não lhe interessava competir com Silvio de Abreu, Gilberto Braga ou Janete Clair e outros imbatíveis criadores do Brasil novelesco da Globo. Mas conseguiu, sempre filtrado pelos interesses comerciais, algo que costurava as gozações contra o Chavo del Ocho de Roberto Gómez Bolaños e as enrascadas em que Ivo Holanda —o rei das pegadinhas, o eterno malandro-mané— se metia para arrancar as gargalhadas do público. Algo que se estendia no ousado quadro “Pegadinhas Picantes”, dedicadas às pipas dos vovôs, rasgando a madrugada com cenas hoje impensáveis.
Reprisado à exaustão por mais de 30 anos, o programa mexicano do senhor vestido de menino, morador de um barril, atravessou gerações e causou uma grita quando deixou de ser exibido, em 2020. Nos últimos anos, já não tinha o mesmo prestígio, sendo usado como tapa-buraco da programação, mas quando Silvio exigiu a compra do humorístico da Televisa, em 1981, estava atento a todo o sucesso do programa pela América Latina, e viu o estouro se repetir por aqui.
São várias as razões possíveis, mas o fato é que Bolaños trabalhou com arquétipos próximos aos nossos, em que o riso sempre se esgueira pela pobreza (Chaves), pela humilhação (Quico), pelos amores frustrados (Florinda e Girafales), pelos boletos que não cessam de bater à porta (Seu Barriga e Seu Madruga).
Do outro lado, Holanda assumia um quê de Mazzaroppi, como um espertalhão que sempre se dava mal para o gozo alheio. É quando o popular encontra eco no popularesco, por vezes ultrapassando o limite do bom senso.
Não à toa, programas de pegadinhas seguem fortes fora do ambiente televisivo, povoando perfis de TikTok latinos, sobretudo no Brasil e México, herdeiros desse formato da câmera escondida, que atua no limite da segurança.
Da mesma forma, com seu caráter centralizador de dono da TV e “showman” de uma plateia sempre feminina, no programa que leva seu nome há décadas, dividia os holofotes com personagens brasileiríssimos.
No “Show de Calouros”, um dos quadros de maior sucesso, jurados rigorosos como Zé Fernandes e Aracy de Almeida, a maior intérprete de Noel Rosa, contracenavam a sério com os caricaturais Pedro de Lara —irônico “bastião moral”— e Sérgio Mallandro, com suas abobrinhas de sucesso avassalador. Tudo embalado por uma vinheta carnavalesca de uma canção russa, aquela do “lálálálálálá….”, dos anos 1920, que ganhou o mundo nos anos 1960.
Involuntariamente, essas criações do SBT, sempre a reverenciar o homem do microfone na gravata, poderiam todas habitar o quarteirão de “A Praça É Nossa” —hoje, um dos pouquíssimos resquícios do humor na TV aberta. Isto é, de um humor que não pretende nada senão manter viva essa linguagem particular, ainda que por vezes empoeirada.
Entre as cores saturadas, que põem o “Qual É a Música?” na mesma paleta dos produtos da Jequiti, esse visual próprio, mesmo inadequado, marcou gerações. E se nesse Carnaval tampouco chegava ao nível de invenção formal de um TV de Vanguarda, ou de um Vox Populi ou Ensaio —para citar criações das TVs Tupi e Cultura—, foi capaz de criar uma identidade.
Uma identidade tão forte que se espalha por outras camadas da cultura, vide as frequentes sátiras do Teatro Oficina, que, no fundo, iam além da rixa em relação a uma disputa por terra, passando pelo reconhecimento dessa força avassaldora da TV —mesmo por parte da emissora que se orgulhava em estar na vice-liderança.
Como Silvio fez com as filhas, a audiência do SBT, na recusa de se render ao politicamente correto ou à renovação das novas “famílias brasileiras”, depende em boa medida do que se passa de pai para filho, de um hábito que se cultiva pelas manhãs, com as ligações incessantes ao Bozo e Vovó Mafalda, com Eliana, Mara Maravilha ou pelo paraíso consumista de Bom Dia & Companhia e seus PlayStations infinitos. Aos moldes da publicidade, na TV de Silvio, tudo era repetição —um hábito, como o de ir à missa.
A fé também se lateralmente na tela do canal 4, mas sempre recusando os métodos da Record do bispo Edir Macedo, dos horários comprados da Gazeta e similares. “Judeu não deve alugar a televisão para os outros. Você não sabe que os judeus perderam tudo quando deixaram outras religiões entrarem em Israel?”, disse Silvio à Folha em 2013.
Se a religiosidade era mais discreta, se manifestando em discursos pontuais de Silvio e de outros apresentadores, a “fézinha” segue onipresente, na constante publicidade dos sonhos do Baú da Felicidade, nos intermináveis sorteios das Tele Senas e nas barras de ouro —uma herança dos tempos de inflação desmesurada.
Entre fézinhas, bancos e baús, Silvio tentou de tudo. Conseguiu muito. Quando diziam que era artista, negava. “Não, eu sempre me vi como produto, um produto meu”, disse a este jornal. Mas seu legado —como o de todo artista ou magnata, quando perde sua batuta— periga há muito perder o equilíbrio.