RAY CUNHA
Há décadas que Dom José Luís Azcona Hermoso, bispo emérito prelado de Marajó, no estado do Pará, denuncia a exploração sexual de crianças no arquipélago. Desde 12 de abril de 1987, vive em Soure, na ilha de Marajó, e vem denunciando a situação miserável da população do arquipélago, a devastação ambiental, a pesca predatória e a exploração de crianças na prostituição e escravidão sexual, e tráfico de crianças e mulheres para a Guiana Francesa e a Europa.
A senadora Damares Alves (Republicanos/DF) também já denunciou o crime horrendo que se passa no Marajó, e que é do conhecimento de todos, até dos jacarés. Durante seu exercício como ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de 2019 a 2022, durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, Damares Alves, que é advogada e pastora evangélica, pôs a boca no trombone. O resultado é que líderes e artistas da esquerda mugiram que Damares estava mentindo; fake news, como se diz.
A artista de televisão Xuxa Meneghel queria a cassação de Damares e o Ministério Público Federal cobrou dela uma indenização de 5 milhões de reais por fake News. Mas os ecos do coração das trevas no Marajó é tão indecente que é como água represada que se avoluma e transborda.
Agora, o assunto volta, como pedrada na cara dos coronéis paraenses. A cantora gospel Aymeê Rocha divulgou uma canção-denúncia, Evangelho de Fariseus, que mexe no inferno da Ilha de Marajó: abuso sexual e tráfico de órgãos. “Marajó é uma ilha a alguns minutos de Belém, minha terra. E lá tem muito tráfico de órgãos. Lá é normal isso. Tem pedofilia em nível hard. As crianças de 5 anos, quando veem um barco vindo de fora com turistas… Marajó é muito turístico e as famílias lá são muito carentes. As criancinhas de 6 e 7 anos saem numa canoa e se prostituem no barco por 5 reais”.
No meu livro-reportagem O CLUBE DOS ONIPOTENTES, que traça um perfil do Brasil de agora, eu abordo a questão marajoara: “A ilha de Marajó é maior do que a Jamaica, Porto Rico ou Trinidad e Tobago, no Caribe, ou do que a Córsega, na França mediterrânea, ou a ilha de Creta, no mesmo mar europeu-africano, e o arquipélago é rico: suas praias atlânticas são deslumbrantes; seus açaizais, imensos; seu rebanho bubalino é o maior do Brasil; sua cerâmica é exportada para o mundo inteiro, via Icoaraci, ou Vila Sorriso, bairro de Belém; e sua produção de pescados contribui para que o Pará seja um grande produtor de peixes.
“Mas neste arquipélago ratos d’água atacam casas de ribeirinhos, roubam e estupram as mulheres; curumins morrem devorados por verme, ameba, giárdia, malária, ou são estuprados dentro de carros enquanto balsas cruzam os rios, e no interior de embarcações, silenciadas, no seu sofrimento, por comida; nas balsas que cruzam os rios do arquipélago crianças são empurradas aos mais torpes atos, às vezes a troco de querosene, para acender lamparinas.
“Quando as embarcações se aproximam, meninas partem em grupo em canoas e remam em direção a balsas, barcos e navios. É lançada uma corda para ajudar as “balseiras”, como são chamadas, a subir às embarcações, onde tentam vender produtos agrícolas. Mas os homens geralmente estão interessados em outra coisa, e as estupram a troco de pacotes de biscoito, leite em pó ou condensado, ou óleo diesel.
“Em declaração ao jornal Beira Rio, da Universidade Federal do Pará (UFPA), a pesquisadora Monique Loma explicou que as famílias não veem isso como exploração sexual, mas como “uma oportunidade para eles; além de gerar renda, os pais olham para a prática como uma chance de as meninas se casarem com algum marinheiro e terem uma chance melhor na cidade”.
“E revela: “Quando contamos à família o que está acontecendo, o que essa atitude gera, percebemos que eles não tinham noção sobre a legislação ou sobre os Direitos da Criança e do Adolescente. Jamais poderiam fazer uma ocorrência, pelo simples fato de aquilo ser o cotidiano deles, não um crime”.
“E o choque: “Foi uma surpresa ver que, para elas, aquilo era brincadeira. Algumas afirmaram estar procurando o príncipe encantado. A naturalidade com que elas falavam de tudo foi um choque. Como eu poderia falar de violência sexual, de exploração, se elas nunca tinham ouvido esses termos?”
Se houvesse vontade política, o Marajó sozinho faria do Pará um dos mais ricos estado da União, mas aí os coronéis não ficariam bilionários. O CLUBE DOS ONIPOTENTES: “Ana Sá estava sondando a instalação de uma base de lançamento de foguete no cabo Maguari, município de Soure, ilha de Marajó, Pará, onde possuía um mundo de terras e de búfalos.
“O cabo Maguari é talvez o melhor ponto do planeta para o lançamento de foguetes. Situado praticamente na Linha Imaginária do Equador, afastado de aglomerações humanas e defronte para o Oceano Atlântico, área de escape por excelência em caso de acidente, localiza-se no maior arquipélago marítimo-fluvial do mundo, o Marajó, formado por cerca de 2.500 ilhas, mas que, na verdade, ninguém sabe quantas são, pois algumas surgem de repente, ou somem.
“A maior delas, homônima, mede 42 mil quilômetros quadrados, quase do tamanho da Suíça, constituindo-se na maior ilha na costa do Brasil e a maior ilha marítimo-fluvial do planeta. O arquipélago é banhado ao norte e a oeste pelo delta do Amazonas, o maior rio do mundo; ao sul, pelo rio Pará, que é um canal formado pelas águas de inúmeros rios, principalmente o Amazonas e o Tocantins, e que desemboca, a sudeste, na baía de Marajó; e, a leste, o arquipélago é banhado pelo Oceano Atlântico. A cidade de Soure fica a 80 quilômetros de Belém, a capital do Pará, o estado mais emblemático da Amazônia, pois encerra nele amostras de todo o Trópico Úmido.
“Ana pretendia fabricar foguetes, satélites e componentes no Distrito Industrial de Barcarena, com energia hidroelétrica da usina de Tucuruí, transportá-los de balsa do Porto de Vila do Conde, o maior do Pará, para Soure, e lançá-los do cabo Maguari. A primeira série de foguetes já tinha até nome: Jacuraru.
“O topônimo do município de Soure tem origem na vila homônima no distrito de Coimbra, em Portugal, a qual os romanos chamavam de Saurium, “lagarto”. Os marajoaras apreciam, na panela, jacuraru, uma espécie de camaleão comum nas ilhas. Agora, começariam a enviar jacuraru para o espaço.
“Como a Linha do Equador é o local de rotação mais veloz da Terra, o Jacuraru teria tudo para ampliar a fortuna dos Sá Dourado, assim como o PIB francês é ampliado por três foguetes lançados na base espacial em Kourou, no meio da selva, no Departamento Ultramarino francês, a Guiana Francesa: Ariane, Soyuz e Vega. O maior deles, o Ariane 5, foi criado em 1996, levando para o espaço alguns dos maiores satélites de telecomunicações e meteorologia do planeta.
“O projeto do Ariane 6, foguete de 62 metros de altura, desenvolvido para lançar espaçonaves ainda maiores do que as transportadas pelo Ariane 5, tem orçamento de 2,4 bilhões de euros, dinheiro dos países da Agência Espacial Europeia (ESA); mais barato e eficiente do que o Ariane 5. Cada lançamento do Ariane custa em torno de 100 milhões de dólares.
“Mas uma nova geração de foguetes reduziu os custos. A SpaceX, Space Exploration Technologies, do bilionário Elon Musk, pode fazer a mesma coisa que o Ariane 5 dezenas de milhões de dólares mais barato. Os dois primeiros foguetes da empresa são os Falcon 1 e Falcon 9, homenagem à Millennium Falcon, de Star Wars, e sua primeira nave espacial é a Dragon, em homenagem ao filme Puff the Magic Dragon, tudo isso concretizado em apenas sete anos”.
O maior romancista da Amazônia, Dalcídio Jurandir, é de Marajó, de Ponta de Pedras. Do tamanho de Machado de Assis e de João Guimarães Rosa, Dalcídio só é um ilustre desconhecido porque, na Amazônia, o sucesso leva a banimento. Eu morava em Manaus quando Márcio Souza começou a fazer sucesso com Galvez, o Imperador do Acre. Aí, correu nos meios literário que os originais de Galvez, apócrifos, chegaram às mãos de Márcio por acaso, e ele os teria publicado como autor. Fake. Ou boato invejoso.
Dalcídio aparece também em O CLUBE DOS ONIPOTENTES: “Alex olhava para a fauna que desfilava à sua frente quando foi apresentado a Bob Herman, assessor de William Popp. Acabaram engatando uma conversa em inglês. Formado em Literatura Americana e especializado em Literatura Ibero-Americana, Herman era surpreendente. Lembrava um Baby Herman negro, nascido na Louisiana. E Alex era leitor voraz; tomou gosto por literatura com seu avô, Dorinato Kubitschek Dourado, que tinha na figura de João Guimarães Rosa o escritor máximo brasileiro.
“Com efeito, Guimarães Rosa criou uma das personagens femininas de ficção mais extraordinárias de toda a literatura brasileira, e mundial: Reinaldo, ou Diadorim, ou Maria Deodorina da Fé Bittencourt Marins, mulher travestida de homem, capaz de fazer quase qualquer coisa que um homem faz. Quando a TV Globo transpôs Grande Sertão: Veredas para a telinha, quem encarnou Diadorim foi Bruna Lombardi, uma das mais belas atrizes brasileiras, entre tantas e tantas beldades. Porém, quando se tratava de mulher, Alex estava mais para Capitu do que para mulheres ambíguas.
“– Gosto muito de Machado de Assis – disse Bob, puxando papo exatamente para um terreno familiar a Alex.
“– Trata-se do escritor mais emblemático do Brasil, por ser muito conhecido e mulato. Na escola, tanto no ensino fundamental como no médio, os professores costumam apresentar uma foto dele feita talvez com o propósito de disfarçá-lo, de maquiá-lo como branco, uma tentativa de esconder que a mestiçagem é base da etnia brasileira; somos um caldeirão étnico misturando três elementos: o europeu, o ameríndio e o africano. O resultado é o povo mais maravilhoso que há na face da Terra, um povo que não discrimina a cor da pele nem religiões – disse Alex.
“Bob ouvia atentamente. Pensou um pouco.
“– Machado de Assis é o meu escritor brasileiro favorito – disse Bob.
“– Machado é o escritor que melhor representa o Brasil, que, por sua vez, tem uma importância fundamental no concerto das nações. O Brasil é fundamental para o resto do mundo porque o nosso potencial em produzir alimentos, o nosso continente tropical, o nosso sincretismo, nos fazem o coração do mundo, a pátria do Evangelho, a potencial pátria de uma nova humanidade. Machado é emblemático porque nasceu no morro; era pobre, é claro. Estudou em escolas públicas, jamais frequentou universidade e foi funcionário público a vida toda. Mas, mesmo assim, fundou a Academia Brasileira de Letras. Os brasileiros gostam de academias. Acho que em cada uma das 5.570 cidades brasileiras há uma academia de letras; e seus membros se sentem tão importantes quanto Machado. Não sei o que os portugueses, que são os criadores do Brasil, acham de Machado; talvez achem que é mais um negro tentando dizer alguma coisa da senzala. Só não é conhecido mundialmente porque era brasileiro e escrevia em português. Se tivesse nascido, hoje, estaria ferrado. Brasileiro, e não sei se sempre foi assim, fazer sucesso é uma ofensa pessoal. Não sei de onde vem essa inveja, mas é assim. Jorge Amado só fez sucesso porque foi ajudado pelo Partido Comunista, que é uma espécie de igreja: de um lado, os cardeais; do outro lado, a miudeza dos corruptos e a multidão de ingênuos. Amado era cardeal. Creio que o ponto mais alto de Machado é Dom Casmurro, romance que tem como sinopse o ciúme. Ou fofoca? Ciúme é um elemento muito forte na cultura brasileira. O que é ciúme? É possessividade, uma pessoa dona do outro; e é assim que é, todo mundo é dono do outro, aqui no Brasil. Contudo, Machado cria, em Dom Casmurro, senão a personagem feminina mais sensual de toda a literatura brasileira, o que eu identifico como a mulher carioca. O fato é que Capitu é uma personagem deliciosa, o embrião da carioca moderna, que mora ou frequenta Copacabana, Ipanema e o Baixo Leblon, é malemolente e tem olhos de ressaca do mar. Para muitos, Capitu simplesmente metia chifre no marido, com o melhor amigo dele, ou amigo da onça, como se dizia nos anos sessenta do século passado. Para outros tantos, Capitu era apenas objeto de fofoca, e seu marido, Bentinho, paranoico. A questão é que o brasileiro, como de resto o machão ibero-americano, se pela de medo de imaginar sua santa esposa sendo trabalhada por terceiros. Mas fale-me de Faulkner, o grande escritor americano – Alex pediu.
“– William Faulkner usava a técnica do fluxo de consciência, também utilizada por James Joyce, Marcel Proust, Thomas Mann, Virginia Woolf. Foi ele que narrou, como nenhum outro escritor, a decadência do sul dos Estados Unidos, criando inclusive um condado imaginário, Yoknapatawpha. Ele também criava múltiplos pontos de vista simultaneamente e utilizava mudanças bruscas de tempo narrativo. Foi genial, genial! Hoje, meu país é muito diferente do país de Faulkner, que nasceu trinta anos após o Sul ter sido derrotado pelo Norte. O Sul, então, vivia sob a supremacia dos brancos de origem inglesa, protestantes, puritanos e coloniais. Antes de se tornar um dos maiores escritores de todos os tempos, foi um faz-tudo. Como era baixinho, media 1,65 metro, foi recusado pelo serviço militar americano, e, assim, se alistou na Força Aérea canadense. Depois, passou um ano na Universidade do Mississippi, em Oxford, onde estudou inglês, francês e espanhol. De lá, foi trabalhar em uma livraria em Nova York, onde, em vez de vender livros, os lia. Foi demitido e voltou para Oxford, onde trabalhou como carpinteiro, pintor de parede e agente dos Correios. Seu primeiro livro foi de poemas, The Marble Faun, publicado em 1924. No ano seguinte, foi para Nova Orleans, onde conheceu e foi influenciado por Sherwood Anderson, escreveu artigos para jornais e revistas e publicou seu primeiro romance, Paga de Soldado, em 1926. Deixou Nova Orleans em 1929 e se estabeleceu em Oxford, onde se casou com Estela Oldham e publicou Sartoris, o primeiro romance passado em Yoknapatawpha. Aí, vieram alguns livros que granjeariam respeito da crítica, mas só começou mesmo a vender bem com Santuário, de 1931; porém, quando estava precisando muito de dinheiro conseguia grana em Hollywood, como roteirista. Acho que ele chegou ao seu maior apuro com O Som e a Fúria, de 1929, a história dos Compson, decadente família do Mississippi. Faulkner disse que esse romance surgiu a partir da imagem de uma garotinha, Candance, Caddy, com a calcinha suja de lama, trepada numa árvore, descrevendo para seus irmãos pequenos e para os empregados domésticos negros o funeral da sua avó. A trajetória de Caddy é contada por meio do ponto de vista de seus irmãos, como Benjamin, Ben ou Benjy, que é idiota. “Uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria”, do monólogo de Macbeth, de William Shakespeare, em um fluxo contínuo de passado e presente, com o ar gasto de tanto carregar sons. Quanto à fúria, é a da derrocada. O próprio cansaço. Quando a personagem Dilsey assume a narrativa ela diz que os brancos se cansam facilmente, enquanto ela tinha que fazer todo o trabalho pesado e envelhecia. Mas ela sabia que todos são iguais. Ela diz, abrir aspas: “Os brancos morrem também. A tua avó morreu que nem qualquer negro”. Fechar aspas. Porém o que mais me impressiona na obra de Faulkner é a transcrição para o papel do fluxo de pensamento. Ele faz isso em longos parágrafos, longos períodos, com pontuação irregular. É o tal fluxo de consciência de Proust e Joyce, o que exige, no mínimo, cumplicidade do leitor, além de muita concentração e mais ainda interesse, se não o leitor não irá adiante – disse Bob, ao longo de uma dose dupla de bourbon.
“– No Brasil, temos um escritor que me lembra Faulkner, um Faulkner amazônida, Dalcídio Jurandir, que, por acaso, e não existe acaso, nasceu em Ponta de Pedras, na ilha de Marajó. Ele é pouco conhecido, porque os paraenses, que é também o povo da ilha de Marajó, não são bons para aplaudir e vender seus próprios escritores, pelo que já observei. No seu livro mais emblemático, Chove Nos Campos de Cachoeira, publicado em 1941, Dalcídio cria personagens de carne, osso e alma. O personagem central do romance, o menino Alfredo, sonha em sair do Marajó e morar em Belém, sonho que ele reparte com um caroço de tucumã, que é um coquinho da Amazônia. Em contraste com Alfredo, seu irmão, Eutanázio, de 40 anos, é destituído de sonhos; não tem sequer um objetivo, nem sentido na própria vida. Vive em um mundo absurdo. Para completar sua miséria, a jovem Irene o despreza. E assim como fazia Faulkner, as personagens de ficção de Dalcídio povoam seus livros como fantasmas, ora em um, ora em outro, em épocas diferentes, às vezes com o mesmo nome. Enquanto Faulkner recria o sul dos Estados Unidos mergulhado em sangue coagulado, espirrado da negrura do preconceito, Dalcídio apresenta uma Amazônia suja de lama, caboclos, ou cabocos, com a alma amortecida por cachaça, da mesma forma que seu doce linguajar silencia no amortecimento da língua pelo espilantol, o princípio ativo do jambu, a emblemática erva do tacacá, que é uma comida de origem indígena. Mas a lama pode surpreender, pois dela pode sair o Saurium.
“Ficaram em silêncio durante alguns segundos. Bob tomou mais um gole de bourbon. Parecia empolgado com o conhecimento literário de Alex.
“– Preciso ler esse Dalcídio – disse.
“– Foram publicados 15 romances dele; creio que conseguirei pelo menos metade, em Belém, onde uma editora, Cejup, deve ter acervo dele em estoque, pois editou a obra de Dalcídio, senão toda, mas quase toda.
“– Maravilha!
“– Como nunca entraram no mercado para valer, os livros de Dalcídio são raros, e desconhecidos, é claro. Ele é o tipo de escritor que deveria ser editado e distribuído em edições comentadas, mas, como eu disse, os paraenses não são bons para vender arte. Creio que haja vários trabalhos acadêmicos sobre Dalcídio, mas não chegam às livrarias. Aliás, pouco da produção acadêmica do Brasil, quanto mais da Amazônia, chega ao mercado. Dalcídio está naquele grupo de escritores clássicos, como William Shakespeare, Miguel de Cervantes Saavedra, Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, e todo esse pessoal que escreve em vernáculo, e que deve ser lido em edições comentadas, a menos que o leitor os conheça muito, ou se identifique muito com eles.
“A conversa acabou bruscamente, pois William Popp chamou Bob.
“– Vou providenciar para que os livros cheguem às suas mãos – disse Alex, meio gritando, enquanto Bob se afastava, e se preparando para dar o fora também. Ele ia dar o fora porque aquela segunda-feira começara atípica, fazendo-o voltar a pensar em um assunto que surgiu na sua vida devido a uma adolescente georgiana escravizada pela máfia russa.”
Em entrevista a este repórter, em 2008, o deputado federal Nilson Pinto (PSDB/PA), doutor em geofísica, ex-reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA), afirmou: “A Hidrovia do Marajó é uma obra de infraestrutura fundamental para o estado do Pará, promovendo a ligação mais eficiente entre Belém e Macapá, passando pelo centro da ilha do Marajó e economizando horas de viagem. Essa obra, que é simplíssima, enfrenta percalços por falta de conhecimento, pelo excesso de zelo gerado pelo desconhecimento de algumas autoridades.
O Ministério Público entende que a obra criaria problemas ambientais e tem procurado impedir de todas as formas que seja realizada, e tem conseguido isso, até agora. Há excesso de zelo de um lado e desconhecimento de causa por outro lado. Tem-se apenas de construir um canal de 32 quilômetros, numa região plana, desabitada, sem, absolutamente, nenhum tipo de problema que possa surgir com a construção do canal. A obra se resume, praticamente, na construção do canal.
“Para quem acha que isso é algo portentoso e agressivo ao meio ambiente, eu recomendo que faça uma visita, in loco, ou pela internet, ao canal Reno-Danúbio, na Alemanha, concluído há várias décadas e que liga a bacia do rio Reno à bacia do rio Danúbio. O Reno deságua no Mar do Norte. O rio Danúbio deságua no Mar Negro. Assim, os alemães ligaram o Mar do Norte ao Mar Negro. Trata-se de um canal de 171 quilômetros de extensão, com 66 eclusas, com desníveis fantásticos, tudo em plena operação, no coração da Alemanha, avançando por terras que têm toda uma história pretérita, que vem do tempo do Império Romano, passando por preciosidades arqueológicas e pelo coração de um país que tem um amor pela questão ambiental fantástico. A obra foi feita no meio da Alemanha e não gerou absolutamente nenhuma reclamação, no país que mais cuida do meio ambiente no mundo.
“Para fazer uma obra cinco vezes menor, de impacto ambiental mil vezes menor, na ilha do Marajó, nós temos um problema terrível com o Ministério Público. Eu não acredito que seja por conhecimento de causa, o que mostraria que essa obra não causará praticamente nenhum impacto ambiental. Acredito, sim, que é desconhecimento de quem acha que vai preservar a Amazônia impedindo que as pessoas que nela moram de ter melhores condições de sobrevivência. É um enorme equívoco do Ministério Público, que não tem competência técnica para opinar e está exorbitando da sua função. Deveriam se basear nos trabalhos dos órgãos técnicos competentes nessa área e não emitir pareceres apenas para defender uma posição aparentemente de defesa da Amazônia, do meio ambiente, mas que, na verdade, é uma posição absolutamente retrógrada, que nada tem a ver com desenvolvimento sustentável.
“O Ministério Público se arvora o direito de defender uma causa que não é de ninguém, mas causa de um ou outro visionário que resolveu fazer de uma questão pequena algo grandioso, não sei com que finalidade. O caso está na Justiça, que tem de se basear naquilo que é correto do ponto de vista do aproveitamento das nossas hidrovias, dos rios, que são as vias naturais que temos para deslocamento na Amazônia; tem que se basear na verdade extraída da competência técnica das instituições amazônicas, para poder dar a decisão. Não podemos ficar com uma visão unilateral emperrando o desenvolvimento da região, a melhoria da qualidade de vida da população. O Ministério Público precisa se reciclar. A minha sugestão é que o pessoal do Ministério Público estude mais. Não basta trabalhar com a visão ideológica. Aliás, o Ministério Público não existe para trabalhar com visão ideológica. Ele tem de trabalhar pelo interesse da sociedade, dentro da visão legal.
“Há um claro exagero por parte dos ambientalistas. É necessário para qualquer obra importante, em qualquer lugar e, principalmente, na Amazônia, que se tomem os cuidados para se evitar impactos ambientais de porte. Isso é necessário e existe conhecimento técnico em várias instâncias, neste país, para assessorar a realização de uma obra sempre que isso é necessário. O que nós não podemos aceitar é a visão da redoma. Somos frontalmente contra a visão preservacionista que vê apenas a floresta e esquece as pessoas que moram na floresta, uma posição absolutamente atrasada” – argumentou Nilson Pinto.
Segundo o marajoara ex-senador Mário Couto (PSDB/PA), “o Ministério Público Federal já recebeu mais de 50 quilos de documentos da parte do governo do Pará, mostrando que os impactos ambientais da hidrovia serão mínimos, comparados aos impactos positivos que ela proporcionará; as medidas mitigadoras e ações compensatórias, já detalhadas em farta documentação, superam qualquer dano que a obra possa causar”.
O projeto da Hidrovia do Marajó é fruto de convênio celebrado entre os governos estadual e federal, com contrapartida de 50%. Segundo relatório da Administração das Hidrovias da Amazônia Oriental (Ahimor), “já foram realizados todos os estudos técnicos e ambientais (EIA/Rima) para a dragagem de 32 quilômetros do canal destinado a perenizar a interligação das bacias dos rios Atuá e Anajás, interligação já existente pela própria natureza, mas durante somente seis meses de cheia”.
A construção da hidrovia consiste na dragagem de 9 milhões de metros cúbicos de sedimentos entre os rios Atuá e Anajás, a fim de garantir a navegação na época da seca, de comboios com até 2.800 toneladas de capacidade de carga em quatro chatas, de Belém a Macapá, vice-versa. Segundo o projeto, a hidrovia atravessará pelo meio o arquipélago no sentido sudeste-noroeste, levando novas oportunidades de emprego e de renda para a população local e facilitando o escoamento da produção de todo o Marajó. Os 580 quilômetros que hoje separam Belém de Macapá, porque a ilha do Marajó tem de ser contornada, diminuirão para 432 quilômetros pelo meio da ilha. Haverá uma redução de 148 quilômetros entre a capital do Pará e a capital do Amapá.
A proximidade da hidrovia com o porto de Santana, na zona metropolitana de Macapá, possibilitará que produtos paraenses, como, por exemplo, açaí, piramutaba, cerâmica de Icoaraci e minérios cheguem aos Estados Unidos, Europa e Japão com redução de custo.
“Além disso, a obra vai permitir acesso aos diversos recursos naturais da região marajoara, modernização do seu parque agropecuário e suprimento dos mercados consumidores de Belém e Macapá, viabilizando a criação de bacias leiteiras e estimulando a piscicultura” – observa ainda o relatório da Ahimor, alinhando. A hicrovia desenvolverá o turismo flúvio-ecológico e a integração nacional do Marajó e do Amapá, por meio da Hidrovia Araguaia-Tocantins, outra obra da maior importância para a Amazônia.
A Secretaria Executiva de Transportes do Pará e a Ahimor cumpriram todas as exigências legais, tais como elaboração de EIA/Rima e realização de audiências públicas. Em setembro de 1998, a Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio-Ambiente do Pará concedeu a licença ambiental para instalação da obra, que foi renovada anualmente, até 2002. Acontece que, por força da ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, até hoje o projeto da hidrovia não conseguiu sair do papel e a consequência disso é que a população do Marajó sofre os efeitos devastadores de doenças infectocontagiosas, principalmente malária, de erradicação remota diante da dificuldade de ações necessárias para debelar a doença.
O governo do estado e o Ministério dos Transportes chegaram a tomar todas as providências para o início das obras, inclusive a avaliação das terras localizadas nos municípios de Anajás e Muaná, feita por técnicos do Instituto de Terras do Pará (Iterpa). Procuradores do estado foram ao encontro dos comunitários para fazer o pagamento das indenizações no próprio local. Um convênio para distribuição do material lenhoso também foi celebrado com as prefeituras de Anajás e Muaná. Além disso, um plano de saúde foi elaborado para atender a área de influência da futura hidrovia. O plano envolve a construção de ambulatórios, proteção aos operários que trabalharão na obra e imunização contra doenças endêmicas. O fato é que está tudo pronto para que a obra seja realizada. Só depende do Ministério Público Federal.
Mas a Hidrovia do Marajó sairá do papel se os parlamentares do Pará e do Amapá no Congresso Nacional e nas assembleias legislativas dos dois estados quiserem. No Congresso Nacional, quando uma bancada se une em torno de um projeto, pode qualquer coisa. Nem Alexandre de Moraes, nem os 11 supremos barram.
Na Amazônia, era Deus no céu e o Exército na Terra. Agora, a coisa está mudando. O crime organizado está cada vez mais organizado, e à vontade.