Mais que uma “perversão da Justiça”, como bem definiu ontem o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, o foro privilegiado – essa aberração criada para proteger autoridades acusadas de crimes durante o mandato – representa a própria desmoralização da Justiça.
Aceitar o foro privilegiado é carimbar o privilégio de que há mais iguais do que outros diante da lei. Barroso não disse, mas é no STF, onde tramitam mais de 500 processos contra parlamentares, que predomina a impunidade. A imensa demora na mais alta corte de Justiça do país para julgar os políticos traduz-se numa vergonhosa afronta ao povo brasileiro.
Segundo levantamento do projeto Supremo
em Números, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), somente no STF, de 404
ações penais concluídas entre 2011 e março de 2016, 276 (68%)
prescreveram ou foram repassadas para instâncias inferiores porque a
autoridade deixou o cargo. A condenação ocorreu em apenas 0,74% dos
casos. Ou seja, menos de 1%.
No
caso dos inquéritos concluídos no mesmo período, o índice de prescrição
ou repasse para instâncias inferiores foi de 38,4% (379 casos). Em
apenas 5,8% dos 987 inquéritos houve decisão desfavorável ao investigado
com abertura de processo penal.
Resumo dessa ópera de impunidade: é muito mais vantajoso para os réus
serem julgados no Supremo, como afirma Ivar Hartmann, coordenador do Supremo
em Números da FGV. Dessas 404 ações, 136 tratavam de crimes contra o meio
ambiente, 39 de casos relativos à lei de licitações e 30 de crimes de
responsabilidade. Outras 26 eram referentes à formação de quadrilha, 25
de peculato, oito à corrupção passiva e cinco, corrupção ativa.
O foro privilegiado beneficia milhares de pessoas no Brasil,
do presidente da República a prefeitos, passando por promotores, juízes
e membros de tribunais de contas. A força-tarefa da Lava-Jato estima
que cerca de 22 mil autoridades são contempladas pelo privilégio
atualmente no país.
O STF é responsável por julgar presidentes, ministros e
parlamentares. Ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), cabem os casos que
envolvem governadores, membros de tribunais de contas e desembargadores
dos Tribunais de Justiça. Já os tribunais regionais federais julgam os
membros do Ministério Público Federal e os juízes federais de primeira
instância. Além disso, cada estado define os foros nas unidades da
federação. Em geral, as constituições estaduais concedem o benefício a
prefeitos, juízes e promotores do Ministério Público Estadual (MPE).
Aberração
O
promotor Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção,
defensor do fim do foro, destaca que os tribunais foram concebidos
apenas para apreciar recursos de decisões da primeira instância e não
para colher provas na fase de instrução da ação, como é necessário nos
processos penais. “Instruir processos nos tribunais é uma aberração. Isso leva à inviabilização da Justiça”, diz Livianu. Para o promotor, o benefício ajuda a prorrogar carreiras de políticos envolvidos em escândalos.
“Vemos uma série de pessoas que têm mandato e se sustentam
usando como escudo o foro privilegiado. Temos, por exemplo, um político
que até pouco presidia o Senado, alvo de 12 investigações criminais e
réu por peculato”, afirmou Livianu, referindo-se ao ex-presidente do
Senado e atual líder do PMDB na Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL).
Em dezembro do ano passado, o STF acolheu denúncia contra
Renan por desvio de dinheiro público em um caso que havia sido revelado
em 2007. Na denúncia, Renan também fora acusado pelos crimes de
falsidade ideológica e apresentação de documento falso, mas o STF
entendeu que esses delitos já estavam prescritos.
Democracia?
Ainda na avaliação de Roberto Livianu, o foro privilegiado,
além de inviabilizar o funcionamento da Justiça e contribuir para o
aumento da impunidade, fere os princípios de uma sociedade democrática. “A própria ideia de privilégio é incompatível com a
essência democrática de igualdade de todos perante a lei. A cultura do
privilégio guarda uma relação que relembra a monarquia. Não é compatível
com os princípios republicanos”, acrescenta Livianu. “O foro é não só desnecessário como ruim para a democracia — concorda Ivar Hartmann.
Em novembro do ano passado, a Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ) do Senado aprovou uma proposta de emenda constitucional
(PEC), de autoria de vários parlamentares, para acabar com o foro. A
proposta, que acaba com o benefício para todas as autoridades
brasileiras nos casos de crimes comuns, inclusive para o presidente da
República, não tem data para ser votada em plenário. Parte dos senadores
têm resistência ao projeto. Fonte: Ver-o-Fato, com jornais O Globo e O Estado de São Paulo.
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