Ênio Silveira (1925-1996) foi um dos mais combativos editores da história do mercado editorial brasileiro. À frente da Civilização Brasileira desde a década de 1950, ele se pautou pelo lema “Quem mal lê mal fala, mal ouve, mal vê” e tentou desconstruir a visão do livro como um objeto para as elites, tendo sido preso pela ditadura ao menos cinco vezes nesse processo de democratização da leitura. Celebrando 70 anos da guinada proporcionada por Ênio, a Civilização Brasileira está reeditando a tradução que ele fez de alguns textos do escritor judeu checo Franz Kafka (1883-1924).
À primeira vista, a publicação de Contos, Fábulas e Aforismos pode enganar. Parece esquisito que o legado de um editor tão politizado seja homenageado por meio de histórias sobre gato e rato, narrativas de tom fantástico e fabular. No entanto, essa curiosa seleta é uma boa forma de abordar uma faceta frequentemente negligenciada de Kafka, a do escritor socialmente engajado.
Lívia Vianna, editora executiva do selo Civilização Brasileira, explica em entrevista ao Estadão ser possível perceber, nas decisões tradutórias tomadas por Ênio, “termos sempre ligados a uma fala mais aguerrida”.
A editora destaca o seguinte aforismo de Kafka: “O momento decisivo no desenvolvimento humano é um todo contínuo. É por isso que estão certos os movimentos revolucionários, que declaram nulo ou inútil tudo o que ocorreu antes deles, pois nada aconteceu ainda”.
“Ele vai buscar nesses aforismos um tom mais revolucionário, umas frases que têm a ver com sua postura”, afirma Lívia. “Esse livro é um símbolo de sua completude como editor, porque ele se destacou na não ficção, mas conseguiu ao mesmo tempo mostrar esse tipo de trabalho virtuoso. Foi muito corajoso ao embarcar nesse universo kafkiano.”
NARRATIVAS. A seleção dos textos, também feita por Ênio à época do lançamento original da coletânea, em 1993, demonstra sua intenção. Contos célebres como Na Colônia Penal, Um Artista da Fome e A Metamorfose dão espaço a narrativas bem menos conhecidas do autor. Um de seus textos mais curtos, Uma Fabulazinha (1920) talvez seja síntese de sua obra:
“- Ai de mim! – exclamou o camundongo. – O mundo está ficando cada vez menor. De início era tão grande que eu me apavorava. Vivia correndo para cá e para lá, e só me tranquilizava quando via, por fim, paredes bem distantes à esquerda e à direita. Mas o espaço entre essas paredes estreitou-se tão rapidamente que já me encontro na última câmara e vejo ali no canto da ratoeira onde decerto esbarrarei.
“- Ora, basta-lhe escolher outro caminho – disse o gato antes de engoli-lo.”
Essa historieta encerra os principais elementos kafkianos: a inevitabilidade do fracasso (“ratoeira onde decerto esbarrarei”), a ubiquidade das instâncias de opressão e poder (o gato como metáfora do Estado, do pai, etc.), antropomorfização das personagens, ironia (o gato fornece uma solução ao rato, mas logo o executa) e categorias do absurdo.
O primeiro e o último contos da coletânea trazem personagens aprisionados. Um é sobre Prometeu, figura mitológica que concede a chama do Olimpo à humanidade e é encarcerado pela eternidade por isso; e o outro é sobre um macaco capturado na natureza que se livra de sua cela se tornando quase humano, antes de perceber que a nossa vida é também uma sucessão de jaulas. “Os seres humanos, a propósito, estão frequentemente iludidos com relação à liberdade. Sendo o anseio de liberdade um dos mais sublimes que se possa ter, é igualmente sublime a ilusão que lhe corresponde”, medita ele.
Já em Graco, o Caçador, o personagem-título morre durante uma caçada a camurças na Floresta Negra, na Alemanha, mas a barca que o levaria ao além-vida se extravia e ele se torna incapaz de chegar ao mundo dos mortos. A figura do ser apartado da existência, na soleira entre a vida e a morte, incapaz de completar a travessia, é uma metáfora duplamente cara a Kafka, pois diz respeito tanto ao judeu errante quanto à mais absoluta alienação do mundo.
Nesse sentido, a tradução de uma figura engajada como Ênio Silveira ganha camadas inesperadas de relevância, uma vez que, ao se aliar a um autor cuja veia social parece apenas latente, o editor nos mostra que a faceta política da literatura não constitui necessariamente panfletarismo, mas sim uma visão aguçada para além da mera conformidade. Se Kafka, conforme relata o amigo e confidente Max Brod, gargalhava ao ler suas sombrias narrativas, é possível ver nesse riso uma radical subversão dos grilhões aos quais suas personagens estão presas, uma negação da impotência individual enunciada por sua literatura. (AE)