Relatório analisou dados de 2015 a 2020 e também mostrou casos de vendas sem a nota fiscal
O programa Farmácia Popular do Brasil, executado pelo Ministério da Saúde, vendeu R$ 2,5 bilhões em medicamentos sem lastro em estoque, ou seja, sem nota fiscal que comprovasse sua aquisição pelo estabelecimento credenciado, entre julho de 2015 e dezembro de 2020.
Lançado em 2004, durante o primeiro governo Lula, o programa também dispensou R$ 7,4 milhões em medicamentos para pessoas já falecidas no mesmo período.Segundo auditoria realizada pela Controladoria-Geral da União (CGU), 17,4% das vendas de fármacos foram feitas pelos estabelecimentos credenciados naquele período.
O volume de despesas com medicamentos sem nota fiscal realizadas pelo Farmácia Popular entre 2015 e 2020 representa 18,5% dos R$ 13,8 bilhões gastos pelo programa na época.
No Farmácia Popular, os estabelecimentos credenciados repassam aos pacientes os medicamentos relacionados de forma gratuita – para diabete, asma e hipertensão – ou a preços reduzidos, com 90% do valor de referência subsidiado pelo governo, que faz o ressarcimento aos estabelecimentos nos quais os medicamentos foram retirados.
Farmácia Popular alvo da PF
O programa foi relançado pelo presidente Lula em junho de 2023. Em setembro, a Polícia Federal deflagrou uma operação a partir de uma denúncia de venda fictícia de medicamentos por uma rede de farmácias com atuação na Região Sul do país. A operação cumpriu 62 mandados de busca e apreensão nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Amazonas e no Ceará.
“A aplicação dos testes de auditoria permitiu concluir que, em 18,53% dos casos, existem evidências de Autorizações de Dispensação de Medicamentos em quantidades e/ou valores superiores ao efetivamente realizado e que os estabelecimentos credenciados não apresentam evidências de aquisições de medicamentos junto ao mercado distribuidor compatíveis com o quantitativo registrado no sistema autorizador de vendas do PFPB no período analisado”, observou a CGU.
A análise foi feita por amostragem nos estados da Bahia, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e Paraíba, em contato direto com farmácias e drogarias credenciadas, considerando “a movimentação diária de ‘entradas e saídas’, em detrimento da verificação mensal consolidada, proporcionando maior precisão na análise”. No total, o programa contava com 34.061 estabelecimentos credenciados no período da fiscalização.
“Apurou-se que houve registros de vendas de medicamentos no Sistema Autorizador de Vendas do PFPB não amparados por comprovação de notas fiscais de aquisição”, apontou a CGU. A irregularidade pode resultar em punições como a devolução dos recursos, multa e descredenciamento.
Pacientes falecidos
A fiscalização também encontrou registros de vendas de medicamentos pelo programa ocorridas após a data de óbito dos pacientes. No total, essa irregularidade causou um prejuízo de R$ 7,4 milhões entre 2015 e 2020.
A conclusão foi resultado do cruzamento de dados do CPF dos pacientes com autorizações emitidas pelo Ministério da Saúde, dados do Sistema Nacional de Registro Civil (Sirc), do Sistema de Controle de Óbitos (Sisobi) e do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do DataSus.
“A situação denota desperdício de recursos públicos e fraude cometida pelo particular que efetua a compra, burlando os controles na farmácia, ou pelo próprio estabelecimento”, afirmou a CGU.
Entre as recomendações para evitar novas fraudes ao Farmácia Popular, a CGU orientou a elaboração de um plano de tratamento de risco, o descredenciamento de estabelecimentos que não comprovarem as vendas com lastro em estoque, o aprimoramento de mecanismos de controle que atestem a presença do beneficiário final no ponto de venda, além da adoção de medidas para recuperação dos recursos pagos indevidamente.
Em contato com o Metrópoles, o Ministério da Saúde informou que está avaliando o resultado da fiscalização realizada pela CGU. A pasta vai emitir um posicionamento sobre o assunto. O espaço segue aberto.
Irregularidades antigas
Um trecho do relatório do TCU:
“Houve repercussão na mídia acerca dessa deliberação. Notícia de 12/11/2010 do jornal O Globo repercutiu a auditoria realizada pelo Tribunal: “TCU descobre fraudes no programa Aqui Tem Farmácia Popular; desvio é de R$ 1,7 milhão” – os grifos foram acrescidos:
BRASÍLIA – Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) no programa Aqui Tem Farmácia Popular – menina dos olhos do governo para dar assistência farmacêutica à população – descobriu uma série de fraudes na venda de medicamentos subsidiados, além de um absoluto descontrole do Ministério da Saúde na fiscalização das irregularidades. Entre 2006 e 2010, as farmácias credenciadas pelo governo supostamente venderam remédios (a preços 90% mais baixos) para 17.258 mortos. No total, foram registradas 57.683 transações em nome de pessoas com registro de óbito. A soma dessas vendas fraudulentas alcança R$ 1,7 milhão.
A descoberta foi possível após o cruzamento dos CPFs dos supostos clientes com o Sistema de Óbitos (Sisobi) do Ministério da Previdência. Muitos constam do cadastro há mais de dez anos, mas continuam oficialmente vivos para sangrar o erário. O relatório cita diversos outros indícios de golpe e expõe a vulnerabilidade do sistema.
O Aqui Tem Farmácia Popular é um dos braços do Programa Farmácia Popular, que, nos últimos quatro anos [2007 a 2010], consumiu R$ 1,4 bilhão dos cofres públicos. Por ele, o cidadão apresenta receita médica e documentos pessoais em farmácias privadas, tendo acesso a medicamentos subsidiados. A partir dos dados do Sistema Autorizador de Vendas, usado pelo ministério, os auditores apuraram excesso de prescrições feitas por um único médico, o que também evidencia fraudes.
Entre janeiro de 2009 e fevereiro de 2010, houve ao menos 9,5 mil ocorrências de concentração de receitas em farmácias. O TCU checou apenas os estabelecimentos com mais de cem vendas mensais, nos quais, tendo ocorrido dez transações no intervalo de uma hora, mais da metade tenha sido com receitas de um médico. Em 4,5 mil ocorrências (48% do total) , tudo o que foi negociado na hora analisada partiu do receituário de um só profissional; em 101 casos, todo o volume do dia foi receitado pelo mesmo médico. Apenas três funcionários fiscalizam as vendas.
A quantidade de vendas do programa às vezes cai drasticamente na mesma farmácia, embora seus medicamentos sejam para o tratamento de doenças crônicas. As variações foram consideradas suspeitas, já que, em curtos intervalos de tempo, não haveria motivo para os pacientes mudarem o padrão de consumo. Em janeiro de 2009, houve 1,6 milhão de autorizações de venda, contra 1 milhão em dezembro do mesmo ano. Cerca de cem mil pessoas descontinuaram suas supostas terapias, o que, para o TCU, merece apuração in loco para confirmar possíveis desvios.
Outro problema é o excesso de transações em algumas drogarias, com clientes que moram em municípios distantes ou estados diferentes.
Em meio ao quadro de irregularidades, o Ministério da Saúde não tem fiscalizado adequadamente os pontos de venda. A partir de 2009, após uma série de denúncias de golpes na imprensa, criou-se uma nova sistemática para apuração de desvios. Entre outras medidas, foi lançado um procedimento regular de seleção de estabelecimentos, que deveriam apresentar os documentos das vendas para checagem, numa espécie de malha fina.
Pelos critérios do Departamento de Assistência Farmacêutica (DAF) do ministério, 1.106 empresas deveriam ter caído nessa malha entre abril de 2009 e janeiro de 2010, mas só 242 passaram de fato por ela. “Sobressai a absoluta ausência de aplicação de multa ou de ressarcimento de dano ao erário”, informam os auditores.
Um dos problemas é falta de pessoal. Há só três funcionários para analisar documentação de vendas. Mesmo assim, dois acumulam outras funções. Compete a cada um analisar 7,6 mil autorizações por mês. O TCU alerta que, quanto mais o programa cresce, maiores as chances de fraude e a sensação de que a fiscalização não alcança a rede associada.
O tribunal questiona os valores pagos pelo ministério por medicamentos subsidiados. Os preços de referência do “Aqui Tem Farmácia Popular” são até 2.500% mais altos que os praticados em licitações públicas de secretarias municipais e estaduais país afora. É o caso do Captopril 25 mg, que tem preço unitário de R$ 0,27 no programa, mas, quando comprado pelas redes públicas, com dinheiro federal, sai em média a R$ 0,01.
Para os auditores, é natural que os valores no varejo sejam mais altos, pois compram-se menores quantidades e é preciso remunerar o lucro das drogarias, entre outros fatores. Mas as disparidades são enormes.
– Quando o ministério compra, paga barato. Quando subsidia, paga caro. Se desse (tudo) de graça, pagaria menos. Não sei qual é a lógica disso, mas é assim que está acontecendo – afirmou o relator do caso do TCU, ministro José Jorge, pouco antes da apreciação do caso em plenário, na quarta-feira.
O acórdão aprovado recomenda que a expansão do programa seja condicionada à elaboração de estudos sobre custo, efetividade, abrangência e melhoria dos processos de fiscalização.
De outro lado, foi realizada Audiência pública na Câmara dos Deputados em 2012 para discutir a auditoria realizada pelo Tribunal. Participaram do debate o diretor do Departamento de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde, José Miguel do Nascimento Junior; o professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Augusto Afonso Guerra; o então secretário de Fiscalização e Avaliação de Programas de Governo do Tribunal de Contas da União, Carlos Alberto Sampaio de Freitas; a assessora do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde, Lore Lamb; e o assessor técnico do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, Elton Chaves. (Do Ver-o-Fato, com informações do portal Metrópoles e agências de notícias)