Novo procurador-geral tem um enorme desafio pela frente. Incompatível com a lua de mel que o PT deseja, o exercício responsável do cargo demanda a coragem de ser fiel à lei
Boa parte das disfuncionalidades institucionais que o País vivenciou na última década foi decorrência da atuação desequilibrada e idiossincrática da Procuradoria-Geral da República (PGR). O Ministério Público, instituição a quem a Constituição de 1988 incumbiu a defesa da ordem jurídica e do regime democrático, foi fonte de atropelos ativistas, bem como de graves omissões. Os quatro anos da gestão de Augusto Aras à frente da PGR trouxeram graves riscos à estabilidade democrática, exigindo malabarismos excepcionais do Supremo Tribunal Federal (STF) na defesa do Estado Democrático de Direito.
Não há, portanto, nenhum exagero no reconhecimento de que o novo procurador-geral da República, Paulo Gonet, tem diante de si um gigantesco desafio na condução da PGR. Em seu discurso de posse, Gonet deu sinais de compreender a gravidade do momento atual. “O Ministério Público vive um momento crucial na cronologia da nossa República democrática. O instante é de reviver na instituição os altos valores constitucionais que inspiraram a sua concepção única, na história e no direito comparado”, disse.
É preciso aprumar a instituição em conformidade com os valores e critérios constitucionais. “Sabemos que não nos foi dado formular políticas públicas nem deliberar sob a conformação social e política das relações entre cidadãos”, afirmou Paulo Gonet, em uma frase que deveria ser relembrada todos os dias pelos membros do Ministério Público. Não lhes cabe fazer política nem – como pretenderam alguns integrantes da Operação Lava Jato – fazer um suposto saneamento da política. “Essas decisões essenciais estão reservadas ao povo, que se expressa pelos representantes eleitos para isso”, disse Gonet.
O Ministério Público – e, em concreto, a PGR – tem muito trabalho pela frente, mas sua tarefa está na seara jurídica. A esse respeito, o novo procurador-geral da República recordou o “dever indeclinável de combater a corrupção, as organizações criminosas, os atos que perturbam a indispensável segurança na vida das relações”.
Há aqui um enorme desafio, por diversos fatores. Com a conivência de Augusto Aras, o governo passado difundiu o discurso de que a corrupção simplesmente tinha acabado e que, portanto, não era mais necessário investigar nada. Como se sabe, trata-se de perigosa falácia. Não existe governo imaculado nem administração pública isenta de erros. A narrativa bolsonarista favorece a opacidade dos atos públicos e contribui para a ocorrência de toda sorte de malfeitos.
Ao mesmo tempo, o PT tem usado o discurso contra a Operação Lava Jato para pregar, na prática, uma espécie de imunidade em benefício do partido. Toda e qualquer investigação seria sinônimo de perseguição política. Na posse de Paulo Gonet na PGR, Lula da Silva criticou as acusações levianas, dizendo, com razão, que elas “não fortalecem a democracia, não fortalecem as instituições”. O problema é que, como o País está farto de saber, o PT considera leviana toda acusação contra sua turma.
Seja qual for o discurso, há uma hostilidade contra a independência do Ministério Público. Não cabe puerilidade. A condução responsável e autônoma da PGR é incompatível com a lua de mel que o PT almeja ter com o órgão. Se Paulo Gonet deseja cumprir, de forma técnica e independente, suas atribuições constitucionais, ele certamente vai contrariar Lula da Silva e sua legenda, cujo histórico é de empedernido negacionismo em relação a toda e qualquer corrupção e mau uso de recursos públicos.
Eis o desafio do novo procurador-geral da República: ser fiel à Constituição e à lei, não às conveniências políticas. Depois da intemperança de Rodrigo Janot e da leniência de Augusto Aras, é preciso reorientar a PGR. “No nosso agir técnico, não buscamos palco nem holofotes, mas com destemor havemos de ser fiéis e completos ao que nos delega o Constituinte e nos outorga o legislador democrático”, disse Paulo Gonet. Sim, o cargo de procurador-geral da República, além de conhecimento jurídico, exige coragem. (Editorial do Estadão)