Tuíre Kayapó Mẽbêngôkre faleceu neste sábado (10), aos 54 anos, por complicações decorrentes de um câncer no útero. As informações são do Repórter Brasil. No final da década de 1980, aos 19 anos, ela tocou a lâmina do facão no rosto de um engenheiro da Eletronorte (hoje Eletrobrás), José Antônio Muniz, em uma audiência realizada em Altamira, no oeste do Pará, para discutir a construção de um complexo de hidrelétricas no rio Xingu, então batizado de Kararaô. Hoje, usina de Belo Monte.
A foto do momento – do repórter fotográfico paraense Paulo Jares Martins – falecido em 2019 – converteu-se em um símbolo, mostrando que os indígenas não aceitariam a destruição da floresta. Também foi decisiva para paralisar as obras por 20 anos. O projeto inicial acabou remodelado e seu nome, Kararaô, um grito de guerra Kayapó, substituído por Belo Monte.
“O gesto dela ficou para a história”, define Márcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA), ex-deputado federal e ex-presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). “A imagem é o signo mais perfeito da revolta dos povos indígenas do rio Xingu contra o barramento do rio”, complementa.
Na última entrevista que concedeu à Repórter Brasil, em outubro de 2023, Tuíre estava com o facão na mão, o mesmo usado em 1989. “Meu corpo representa o facão, e o facão representa meu corpo, pois são uma única força. Uma força e uma luta. Uma história”, definiu.
A entrevista foi realizada no quintal da casa dela. À época, a guerreira Kaypó, se recuperava de uma sessão de tratamento do câncer.
Muito além do episódio do facão, Tuíre exerceu um papel de referência, liderando marchas e protestos em Brasília. Ela foi pioneira no protagonismo feminino na luta dos povos indígenas. “A primeira cacica entre os caciques Kayapó”, lembra Mydjere Kayapó, do Instituto Kabu.
Décadas depois, sua atuação abriu caminho para a eleição de deputadas indígenas como Célia Xakriabá (PSOL) e a atual presidente da Funai, Joenia Wapichana (Rede), além da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara (PSOL). “Antigamente, eu estava sozinha, mas hoje tenho essas mulheres guerreiras ao meu lado”, afirmou à Repórter Brasil em outubro.
Nhaktak Kayapó lembra que Tuíre foi responsável pela realização de um encontro de mulheres em 2022. Na ocasião, mais de 50 indígenas se reuniram na aldeia Tekrejarotire, onde Tuíre vivia. “A Tuire vem lutando pelo nosso direito, pela nossa cultura, pela nossa floresta. Agora está nos deixando. Nós vamos fazer o trabalho que ela deixou para nós”, diz Nhaktak.
Uma nova geração de Tuíres
Ela também preparou a família para continuar o seu trabalho. “Ela deixou a luta para nós, para as novas gerações. Ela é uma pessoa guerreira, corajosa, deixou um exemplo para todos nós”, ressalta Patkore Kayapó, sobrinho de Tuíre e presidente da Associação Floresta Protegida.
Megaron Kayapó, sobrinho do cacique Raoni Metukitire, faz coro a Patkore. “Ela deixou um caminho para outros seguirem.”
No dia em que conversou com a reportagem, pediu para ser fotografada ao lado da neta, que tem o mesmo nome dela e empunhava uma miniatura do facão. Disse que estava ensinando a criança a defender o povo Kayapó igual ela.
“Ela vai me representar quando crescer. É a nova Tuíre que está surgindo, que vai crescer e defender o povo igual eu estou fazendo”, afirmou.
Tuíre sabia do seu papel. Na última entrevista que concedeu disse: “Sou mulher, mas tenho a mesma determinação que um homem na hora da raiva. Tenho os mesmos direitos que um homem. Não tenho medo de nenhum homem. Não tenho medo de ninguém, pois possuo a mesma força que vocês representam ter”.
Dias depois da conversa, foi sancionada a lei que trata do Marco Temporal. “Esses senadores, esses ministros – que vivem dizendo que são grandiosos, que têm direito a tudo, por que não têm coragem de chegar até nós, indígenas, e conversar cara a cara para ouvir o que temos a dizer? Por que falam e realizam as coisas pelas nossas costas?”, questionou.
Ela mesmo respondeu as perguntas que fez: “Essas pessoas dizem ter poder para falar, mas são apenas covardes. Estamos sempre no Congresso e eles nunca nos recebem. Estão sempre fugindo”.
As palavras de Tuíre se concretizaram na última segunda-feira (5), quando lideranças indígenas foram barradas na primeira reunião de uma comissão para discutir o Marco Temporal, em Brasília. A iniciativa, encabeçada pelo Supremo Tribunal Federal, é vista com desconfiança pelo movimento indígena.
Tuíre deixa o marido Kôkôto Kayapó, o cacique Dudu, duas filhas e netos.
ENTREVISTA EM 2023 À REPÓRTER BRASIL:
O TERÇADO NA CARA DO PODER: VEJA