O Pará continua sendo uma enorme bagunça fundiária e pouco ou quase nada tem sido feito para resolver o problema. Resultado: reina a grilagem de terras, de braços dados com a insegurança jurídica. Esse caos se revela em números: cerca de 22,7 milhões de hectares de áreas particulares e outros 18,5 milhões de terras públicas só existem no papel, para alegria dos grileiros.
Isso permite corrupção generalizada, inclusive de agentes públicos, e a movimentação de empresas envolvidas nas fraudes, que continuam, por influência ou apadrinhamento político, a se beneficiar da bagunça. E agora, com um novo ingrediente em cena: sem poder provar que são proprietárias das terras que ocupam, essas empresas embolsam bilhões no Estado com a venda de crédito de carbono no mercado internacional.
A situação é crítica, mas o governo estadual finge que não vê o problema e nem se apresenta para buscar solução, deixando o patrimônio fundiário à mercê de verdadeiras quadrilhas de engravatados que agem à sombra da impunidade.
Vale saber o que está ocorrendo lendo o último estudo do Instituto do Meio Ambiente e do Homem na Amazônia (Imazon), que escancara a realidade do caos nas terras paraenses. Leia, abaixo:
“Estado que teve nos últimos sete anos as maiores áreas desmatadas na Amazônia, o Pará enfrenta um caos fundiário tão grave que pode barrar as políticas de desenvolvimento socioambiental. Uma pesquisa inédita recém publicada analisou 10.728 matrículas de imóveis canceladas nos cartórios por terem sido registradas ilegalmente e concluiu que pelo menos 332 realmente existem e poderiam voltar a integrar o patrimônio público. Porém, em 12 anos, apenas um imóvel foi retomado pelo estado.
Se somados, esses milhares de títulos cancelados chegam a uma área de 91,12 milhões de hectares, o que corresponde a 73% do Pará. O que seria impossível, pois o estado já possui quase 50% de seu território formado por áreas protegidas, como unidades de conservação e terras indígenas. Por isso, esses números já evidenciam dois grandes problemas nos registros dos cartórios: terras matriculadas em sobreposição a outras ou áreas fantasmas, que só existem no papel. Enquanto o primeiro caso pode ser relacionado com a tentativa de grilagem, o roubo de terras públicas, o segundo geralmente é motivado pela obtenção de empréstimos bancários. Ou seja: as pessoas registram nos cartórios terras que não existem para usá-las como hipoteca.
“Depois que o registro é feito, tem validade legal até que seja realizado seu cancelamento. Ou seja, a área pode ser vendida, usada como garantia em empréstimos, ter planos de manejo para exploração madeireira e até projetos de créditos de carbono. Por isso, enquanto o poder público não retomar as áreas griladas, seguirá incentivando crimes ambientais, conflitos por terra e ameaçando direitos territoriais de comunidades tradicionais”, alerta Brenda Brito, pesquisadora do Imazon e co-autora do estudo.
Entre os municípios, recordistas históricos em áreas desmatadas também ocuparam o ranking do maior número de títulos cancelados: São Félix do Xingu e Altamira. Juntos, eles concentram 50% da área atingida pela anulação das matrículas: 45,6 milhões de hectares.
Estado pode retomar área de floresta 10 vezes maior do que a cidade de São Paulo
Desses mais de 10 mil títulos cancelados, 332 foram localizados pelos pesquisadores no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), onde somam 2,5 milhões de hectares. A partir dessa localização, os autores do estudo também cruzaram o georreferenciamento das áreas com dados de mudança no uso e cobertura da terra e descobriram que 811 mil hectares já haviam sido desmatados até 2020, o que corresponde a 34% desses imóveis. E, ao analisar o território derrubado, eles ainda mostraram que 77% estava sendo usado para a agropecuária.
Por outro lado, 1,5 milhão de hectares nesses imóveis ainda seriam áreas de florestas (60% do total), o que evidencia a urgência de serem retomados pelo poder público e destinados para a conservação. “Estamos tratando de uma área de floresta pública equivalente a dez vezes a cidade de São Paulo apenas nesses 332 imóveis. Eles podem estar em áreas do governo estadual ou federal, que precisam definir qual será o destino desses imóveis dentro das possibilidades previstas em lei. Isso ajudará no desenvolvimento socioambiental do estado, reduzirá os crimes ambientais e conflitos por terra e ainda trará segurança jurídica”, ressalta Brenda.
Decisão histórica do CNJ motivou cancelamentos
Chamado de “Combate à Grilagem de Terras em Cartórios no Pará: Uma Década de Avanços e Desafios”, o estudo é resultado do trabalho de cinco pesquisadores do Imazon e da UFPA para o projeto Amazônia 2030. A proposta da pesquisa foi analisar os resultados práticos de uma decisão histórica do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 16/08/2010, que determinou o cancelamento administrativo (ou seja, sem necessidade de ação judicial) de todos os registros de imóveis que haviam sido feitos nos cartórios do Pará desrespeitando a Constituição Federal.
Isso porque a legislação estabelece um limite máximo de área que pode ser titulada pelos órgãos fundiários sem a prévia autorização do Congresso, que varia conforme a data da matrícula. Entre 16/07/1934 e 08/11/1964 esse limite foi de 10 mil hectares, entre 09/11/1964 e 04/10/1988 de 3 mil hectares e a partir de 05/10/1988 de 2,5 mil hectares. Com a decisão do CNJ, todos os registros de propriedades que desrespeitassem essas regras deveriam ser cancelados, inclusive quando houve divisão das áreas. Por exemplo: se a matrícula de um imóvel de 3 mil hectares tivesse sido desmembrada em duas de 1,5 mil hectares cada, ambas deveriam ser canceladas.
Na prática, essa decisão do CNJ transferiu para os supostos proprietários a responsabilidade de provar que as terras realmente foram adquiridas por eles conforme a lei, já que é possível regularizar as matrículas canceladas em caso de apresentação dos documentos que comprovem sua legalidade.
Caso Jari: a única área retomada pelo Pará
Em 2018, o governo do Pará registrou em seu nome a gleba “Arraiolos”, uma área de 386 mil hectares no município de Almeirim, que corresponde a mais que o triplo da cidade do Rio de Janeiro. Isso ocorreu após a retomada da Fazenda Saracura, um imóvel registrado ilegalmente em nome da empresa Jari S/A que foi alvo de cancelamento após a decisão do CNJ. Conforme a pesquisa, esse teria sido o único território retomado pelo estado apesar dos milhares de registros anulados.
Falta de digitalização e desorganização dos dados favorecem caos fundiário
O estudo aponta que para começar a resolver o caos fundiário instalado no Pará, é preciso primeiramente digitalizar e organizar os dados fundiários, possibilitando o cruzamento entre eles. A partir daí, o poder público precisa agir para retomar e destinar as áreas griladas. Porém, com a atual desorganização das informações públicas, não é possível saber o destino desses imóveis com as matrículas canceladas. Onde se localizam esses imóveis? Qual o tamanho? Em nome de quem estão registrados? Quantas matrículas são de terras que não existem? Quantos conseguiram comprovar sua legalidade e já foram regularizados? Quantos estariam buscando regularização fundiária no órgão de terra ou quantos sequer tentaram regularizar sua situação? São todas perguntas que a bagunça nos dados impossibilitou que os pesquisadores conseguissem responder. E, tratando-se de patrimônio possivelmente público, a sociedade tem o direito de receber estas respostas.
“Apesar de estarmos no século XXI, trabalhamos com fontes de papel nos órgãos públicos e nos cartórios. Se eu perguntar para o Iterpa (Instituto de Terras do Pará) ou para o Incra se emitiram um título em 1934 para a dona Maria, vai demorar dias, semanas ou até meses para receber a resposta, porque isso não está informatizado. É uma situação que incentiva a grilagem, não faz sentido nenhum. Hoje todo mundo discute crédito de carbono, mas não conheço nenhuma árvore que não fixe raízes no chão. Por isso, precisamos resolver esse caos fundiário urgentemente para termos a comprovação de quem é o dono legal da área antes de investir em carbono. Se não, ficaremos reféns de uma ecogrilagem”, explica o professor de Direito Agro-ambiental da Universidade Federal do Pará (UFPA) Girolamo Domenico Treccani, um dos autores da pesquisa.
Marco no combate à grilagem
O único caso conhecido publicamente de retomada de terra pelo governo estadual é uma área de 386 mil hectares no município de Almeirim, que corresponde a mais que o dobro da cidade de São Paulo. Trata-se de imóvel registrado ilegalmente em nome da empresa Jari S/A, cuja retomada o governo estadual requisitava desde 2004. O imóvel foi alvo da decisão do CNJ de 2010, mas apenas em 2018, e após uma ação judicial específica, o estado registrou o imóvel em seu nome.
No entanto, até o momento não há notícias de que a área tenha sido destinada para outra finalidade, incluindo a regularização de territórios de comunidades presentes na região. Esse caso exemplifica a complexidade de resolver em definitivo o problema dos imóveis com registros ilegais em cartório, incluindo a necessidade de um esforço multi-institucional para atribuir uma destinação adequada ao imóvel.
Nosso estudo demonstra que a decisão do CNJ foi um importante marco no combate à grilagem de terras no Pará, mas que ainda é necessário aumentar a transparência sobre seus resultados efetivos. Além disso, para aumentar a segurança fundiária no estado é essencial que o TJPA e o governo do estado informem com transparência quais imóveis foram alvo da decisão, quantos conseguiram regularização após a decisão e quantos ainda precisam ser retomados e destinados.
Para isso, é crucial que o Tribunal de Justiça do Pará avance na implementação das regras que preveem a digitalização dos serviços dos cartórios de registros de imóveis e que disponibilizem esses dados para órgãos como o Ministério Público”.
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Cartórios emitem nota
A respeito do estudo do Imazon, a Associação dos Notários e Registradores do Estado do Pará (Anoreg-PA), soltou a seguinte nota:
“A ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO ESTADO DO PARÁ (ANOREG/PA) esclarece que as matrículas imobiliárias registradas nos Cartórios sempre devem ter como origem um título que comprove sua existência. Tais títulos, em um Estado de dimensões continentais como o do Pará, com uma série de terras de preservação e pertencentes a entes públicos, normalmente são conferidos pelos órgãos estaduais ou federais – detentores do cadastro territorial – que à época não dispunham das ferramentas hoje existentes como as espaciais e de geolocalização.
Da mesma forma, cabe aos Registradores de Imóveis dar cumprimento às decisões judiciais e normativas expedidas pelo Poder Judiciário.
Com o objetivo de combater justamente a grilagem de terra no Estado, garantindo a segurança jurídica das propriedades, a Corregedoria Nacional de Justiça determinou o cancelamento de registros imobiliários e matrículas considerados irregulares no Estado do Pará. A medida afetou diversos registros que não obedeceram os limites de área definidos pelas sucessivas Constituições promulgadas no país, dentre outras razões.
As normativas se deram em atendimento à solicitação feita por órgãos e entidades estaduais e federais, como o Instituto de Terras do Pará, a Procuradoria-Geral do Estado, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Ministério Público, a Advocacia-Geral da União e a Ordem dos Advogados do Brasil que denunciaram algumas irregularidades.
Segundo MyrzaTandaya, presidente do Colégio de Registro de Imóveis do Pará, instituto membro da ANOREG/PA, “os cartórios lamentam algumas notícias divulgadas recentemente nos órgãos de imprensa, feitas de forma generalizada, sem o contexto histórico necessário. Existem 106 cartórios de Registro de Imóveis no Estado do Pará, providos por delegatários aptos a darem todo o suporte jurídico indispensável à correção deste problema histórico, comum a todos os Estados da Federação, uma vezque tem origem até no século XIX. Após os cancelamentos das matrículas, esta correção é feita por meio do procedimento de requalificação que traz regras para os interessados, fixadas a partir de orientação do CNJ, que desejem buscar a regularização da situação, garantindo-se a segurança jurídica das propriedades.”
A presidente da ANOREG/PA, Moema Locatelli Belluzzo,ressalta que “se deve ter muita responsabilidade e ponderação em informações dirigidas ao público em geral, de modo a não colocar em risco, inclusive a economia do Estado”. Ademais, ratifica que“a situação fundiária no Pará, assim como dos demais Estados brasileiros, é fruto de um longo processo histórico de ocupação da terra, que envolve diversos agentes, que remonta ao período colonial brasileiro, e que os registros de imóveis do Brasil, garantem a constituição segura dos direitos reais, a exemplo da propriedade.”