Dos juros baixos e da “desglobalização” ao home office e ao comércio eletrônico; do ensino a distância e da telemedicina às lives e à mudança do “dress code” de trabalho. O jornal “O Estado de São Paulo ” fez um levantamento sobre as transformações que vão permanecer quando a covid-19 passar. Entenda o que elas podem significar, em 2021, para a sua vida, os negócios e o País. Comecemos pela economia.
As medidas de isolamento social adotadas aqui e lá fora, para tentar conter a propagação do coronavírus, tiveram um impacto brutal na economia, provocando mudanças relevantes no cenário pré-pandemia ou reforçando tendências que já estavam em curso.
A seguir, você poderá conferir as principais transformações que ocorreram na economia neste período e que deverão se manter nos próximos meses ou anos, e os efeitos que elas terão na sua vida financeira, nos negócios e no País. A lista inclui os juros baixos, o dólar alto, o reforço na poupança para imprevistos, a repaginação do “coronavoucher”, a explosão da dívida pública e a “desglobalização”.
1 – Juros baixos
Durante a pandemia, a queda dos juros – que já vinha ocorrendo desde o governo Temer e ganhou tração na atual gestão – acentuou-se. Para tentar alavancar a atividade econômica e tirar o País da profunda recessão registrada nos primeiros meses da covid, o Banco Central (BC) cortou a taxa básica (Selic) para 2% ao ano, o menor patamar da série histórica, no qual se mantém até hoje, e não há perspectiva de elevação significativa no horizonte.
Diante do retrospecto do País neste campo, como tradicional campeão mundial dos juros altos, é difícil acreditar que a bonança possa durar muito tempo. Até analistas respeitados no mercado questionam a capacidade de o BC manter as taxas no nível atual. Mas, segundo economistas de diferentes correntes de pensamento ouvidos pelo Estadão, a tendência é de os juros continuarem muito baixos, seguindo um movimento internacional, por pelo menos mais um ano ou até um pouco mais, ainda que venham a sofrer uma ligeira alta até lá.
Com a inflação na faixa de 3% ao ano, isso quer dizer que as taxas reais continuarão negativas e que o investimento em aplicações de renda fixa, como os CDBs, os fundos e a poupança, não cobrirá sequer a perda do valor de compra da moeda. Por outro lado, para os tomadores de crédito e para quem está no vermelho, incluindo o próprio governo, que fechará o ano com um rombo de quase R$ 1 trilhão, a manutenção dos juros baixos deverá representar um alívio mais que bem-vindo em suas contas.
“Os juros no próximo ano serão muito maiores do que neste ano? Não”, diz Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro, que deixou o cargo em julho para se tornar sócio e economista-chefe do banco BTG Pactual, a partir de janeiro. “Eu acredito que isso é duradouro, sim, e esta percepção vem se fortalecendo. Não é a minha opinião, é o que os mercados estão dizendo”, afirma Gustavo Franco, sócio da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central (BC). “Com a economia em recessão e o desemprego alto, os juros deverão continuar baixos por um tempo estendido”, diz Tony Volpon, ex-economista-chefe do banco suíço UBS no Brasil e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central (leia as entrevistas completas de Volpon e Franco).
A definição do movimento dos juros – se o patamar atual vai se manter por um prazo mais longo ou se será um fenômeno efêmero, que durará só mais alguns meses – dependerá de vários fatores. O primeiro é o ritmo da retomada da economia. Se a recuperação vier de forma acelerada e não houver novas intempéries pelo caminho, os juros deverão começar a subir de forma lenta e gradual, de acordo com Volpon, em direção ao nível pré-pandemia, de 4,5% ao ano, mas ainda bem abaixo da média praticada historicamente no Brasil.
O segundo fator que poderá provocar uma elevação das taxas é um repique da inflação. Mas, apesar da ligeira alta ocorrida nos últimos meses, puxada pelo aumento do preço do arroz e de outros alimentos, a expectativa dos analistas é de uma inflação de 3,2% para 2020 e 2021, ambas bem abaixo da meta anual, de 4%, segundo os dados mais recentes do boletim Focus, que reúne as estimativas dos bancos para os principais indicadores econômicos.
Outro ponto que deverá nortear o comportamento dos juros é a questão fiscal. Se o teto de gastos for preservado e a equipe econômica conseguir manter as contas públicas sob controle, resistindo ao ímpeto gastador de alguns políticos, de ministros e até do presidente Jair Bolsonaro, o BC terá uma margem de manobra maior para manter o atual nível das taxas.
“Para consolidar o cenário de juros baixos e isso não ser algo de dois ou três anos, mas de mais de uma década, teremos de fazer um esforço de ajuste fiscal”, afirma Mansueto Almeida. “Ainda bem que a gente está vendo como é bom viver com Selic de 2% ao ano”, diz Gustavo Franco. “Isso de fato tem ajudado lá em Brasília. Quando a turma ameaça os políticos dizendo que ‘vai subir o juro tudo de novo’, o pessoal fica com medo.”
Se as taxas se mantiverem no patamar atual por um prazo mais longo, haverá uma guinada radical no cenário macroeconômico do País. “Já há algum tempo tenho opinado que essa queda de juros parece com a estabilização da economia, inclusive no aspecto cultural”, afirma Franco, que fez parte da equipe que desenvolveu e implantou o Plano Real. “Sua relevância só é inferior ao fim da hiperinflação, mas ela é parecida nos efeitos.”
No novo cenário, a “ciranda financeira” ou o “rentismo”, como preferem alguns, perde atratividade, como já está acontecendo, e o investimento na produção e em ativos reais, como imóveis e máquinas, ganha força. “A taxa de juros é uma espécie de medida da distância entre o presente e o futuro, que se aplica em tudo na vida: na poupança, no investimento, na construção, nos preços dos ativos, no tamanho da Bolsa, no câmbio. Tudo tem juro no meio”, diz Franco. “Com o juro caindo como caiu, tudo que é preço de ativo muda para melhor. O futuro fica mais perto e invertem-se algumas lógicas habituais do mundo empresarial.”
Se tal cenário se confirmar, por mais improvável que possa parecer para gerações de brasileiros que se acostumaram a viver com os juros na estratosfera, o Brasil poderá ingressar no clube dos países com taxas civilizadas e contar com um estímulo poderoso para o desenvolvimento.
2 – Dólar alto
Durante a crise, o dólar deu um salto. Depois de roçar os R$ 6, em meados de maio, a moeda americana recuou, em meio a solavancos pontuais, para a faixa de R$ 5,5, mas ainda registra uma valorização de 36% no ano, até 13 de novembro, e de 9,3% desde 20 de março, quando o Ministério da Saúde declarou o estado de transmissão comunitária do coronavírus.
Entre as 30 moedas mais negociadas no mundo, o real ainda acumula a maior desvalorização, puxada pela retirada maciça de capitais do País e pela redução dos aportes externos na produção.De janeiro a outubro, de acordo com o Banco Central (BC), o fluxo cambial ficou negativo em US$ 20 bilhões, puxando o dólar para cima. No canal financeiro, que reúne os investimentos estrangeiros diretos e em carteira, remessas de lucro e pagamento de juros, a saída de recursos superou o ingresso em R$ 52,7 bilhões, um resultado compensado apenas em parte pelo saldo registrado na balança comercial, de US$ 32,7 bilhões.
Embora as turbulências políticas e a política ambiental do País sejam muitas vezes apontadas como responsáveis pela fuga dos estrangeiros e pela elevação do dólar no período, dois outros fatores teriam levado à debandada dos investidores externos e à escalada da moeda americana frente ao real, segundo economistas de diferentes tendências ouvidos pelo Estadão: a queda substancial dos juros locais, para o patamar inédito de 2% ao ano, e as incertezas geradas pela pandemia em relação ao desempenho da economia global.
“O nosso movimento nos juros foi fundamental para dar ao câmbio um feitio que ele deveria ter desde quando você quiser”, diz Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor-executivo do Instituto de Estudos do Desenvolvimento Industrial (Iedi) e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. “Vinha muito capital de fora em função disso, valorizando a nossa moeda, e a redução dos juros acabou com aquele ganho fácil da arbitragem cambial.”
Para o economista Carlos Langoni, ex-presidente do BC e diretor do Centro de Economia Mundial, ligado à Fundação Getúlio Vargas (FGV), a saída dos estrangeiros e a alta do dólar se devem também ao “choque global” provocado pela coronavírus. “O que houve foi um tsunami que começou na China e foi chegando ao Brasil”, afirma. “No mundo todo, houve uma aversão ao risco que se refletiu numa fuga de capitais, principalmente de economias emergentes.”
Independentemente da discussão sobre o que teria provocado a alta do dólar, o pior parece já ter passado. Apesar do soluço registrado no final de outubro, em decorrência dos temores de investidores internacionais em relação aos efeitos que uma nova onda de contágio na Europa pode ter na economia mundial, as estimativas para os próximos meses e para 2021 continuam positivas.
De acordo com o Boletim Focus, produzido pelo BC, que reúne as estimativas dos bancos, a previsão divulgada em 6 de novembro é de que a moeda americana feche 2020 em R$ 5,45, praticamente estável em relação à cotação atual, e em R$ 5,2 em 2021, 7,1% abaixo do valor corrente.
Na avaliação do economista Gustavo Franco, sócio da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do BC, houve “uma espécie de overshooting” do dólar e “o normal” agora seria a cotação recuar mais um pouco. “Houve muita criação de liquidez nos Estados Unidos e isso vai para a extremidade do sistema, vai chegar aqui.”
Segundo ele, a perda de atratividade da renda fixa para os investidores externos deverá ser compensada, em alguma medida, pelo ingresso de moeda forte para a compra de ativos no País, que ficaram bem mais baratos com a cotação atual do dólar. “Estamos num período de transição. Com esse juro e com o dólar onde está, é outra equação”, diz. “Acredito que a conta de investimento direto vai continuar muito positiva, mas a conta financeira, que governa o dólar, está meio indefinida.”
A combinação de juros baixos e dólar alto deverá favorecer o setor produtivo, especialmente a indústria, que perdeu competitividade na arena global nas últimas décadas. As exportações serão beneficiadas, apesar da retração do comércio global, e as importações ficarão mais caras. “Em mantendo essas condições, a indústria vai ser outra”, afirma o economista Júlio Sérgio Gomes de Almeida.
Para Tony Volpon, ex-economista-chefe do banco UBS no Brasil e ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC, porém, as mudanças ocorridas no câmbio e nos juros não serão suficientes para a indústria reconquistar o espaço perdido na economia do País e no mercado global. Para se recuperar, em sua visão, o setor terá de passar por uma profunda “transformação cultural”.
“Nós temos uma indústria viciada em subsídio, em tarifa de importação, em Zona Franca”, afirma. “Se a gente conseguir abrir a economia, manter uma taxa de câmbio relativamente competitiva, ter um ambiente de negócios amigável e estimular o aumento de produtividade nas empresas, não há razão para não conseguir reverter a decadência industrial do País, que vem desde os anos 1990.”
A questão, como sempre, é que a indústria brasileira resiste fortemente ao “desmame”. O lobby da “boquinha”, destinado a preservar as benesses obtidas no passado, está rolando a céu aberto em Brasília e se infiltrando no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios e no Congresso. “O lobby do setor automobilístico está aí desde Juscelino Kubistchek. Ninguém tira a proteção deles. São 50 anos de proteção”, diz Volpon. “O que a gente tem de fazer é criar um mecanismo para realizar algum tipo de avaliação de custo/benefício dos programas, inclusive do ponto de vista fiscal.” Agora, como diz o velho dito popular, “só falta combinar com os russos”.
3 – Reforço na poupança
Em meio às incertezas trazidas pela pandemia e ao desemprego recorde registrado no País, muita gente decidiu engordar a sua poupança. Até por conta da quarentena e do fechamento das lojas, o consumo perdeu força, apesar da recuperação registrada nos últimos meses, com o fim das medidas de isolamento social.De janeiro a outubro, segundo o Banco Central, a captação líquida (depósitos menos saques) da caderneta de poupança, ainda a aplicação mais popular no País, chegou a R$ 144,2 bilhões, mesmo com o rendimento – de cerca de 1,6% ao ano – ficando abaixo da inflação, estimada em cerca de 3% em 2020.
O resultado alcançado pela poupança durante a pandemia, turbinado pela transferência de bilhões de reais em recursos públicos para a população, por meio do pagamento do Auxílio Emergencial e pela antecipação do 13º dos aposentados, entre outras iniciativas do gênero, foi recorde para o período desde o início da série histórica, em 1995.
Com a reabertura do comércio e a retomada gradual da economia, alguns analistas esperavam que a disposição de poupar fosse diminuir sensivelmente. Mas, em outubro, último dado disponível, os depósitos voltaram a superar os saques, pelo oitavo mês seguido, com captação líquida de R$ 7 bilhões.
A percepção, ainda assim, continua a ser de que o nível robusto de captação da caderneta é um fenômeno temporário, que deverá se manter só por mais alguns meses – inclusive por causa dos juros baixos, que desestimulam as aplicações de renda fixa, como a poupança –, e não um sinal de que a crise transformou o Brasil numa nação de poupadores.
“É uma poupança circunstancial, muito por conta da redução de gastos das famílias durante o isolamento social e de uma ingestão bilionária de recursos pelo governo com o Auxílio Emergencial”, diz Ademir Corrêa Júnior, diretor de Investimentos do Bradesco. “Essa poupança, concentrada na faixa de renda mais baixa, não espelha um comportamento que vai perdurar.”
De acordo com o próprio Corrêa Júnior, porém, uma parcela dos poupadores deverá continuar a poupar mais do que antes, embora menos do que no auge da crise. Para ele, a pandemia pode ter provocado uma mudança no comportamento do consumidor, levando-o a questionar se precisa consumir tanto quanto antes e comprar tudo o que comprava. Isso poderá se refletir nos depósitos da poupança e de outras modalidades de investimento, que também tiveram aumento de captação no período. “Surgiu uma consciência diferente na pandemia”, diz Corrêa Júnior.
4 – ‘Coronavoucher’ repaginado
Criado no início da pandemia para atender os trabalhadores informais, os desempregados e as famílias de baixa renda, incluindo os beneficiários do Bolsa Família, o Auxílio Emergencial, também conhecido como “coronavoucher”, tem data marcada para acabar.
Em dezembro, será paga a última parcela do benefício, que foi fundamental para amenizar os efeitos da crise no País. Segundo dados oficiais, o programa – que incluiu cinco parcelas de R$ 600 de abril a agosto e mais quatro de R$ 300 a partir de setembro – atendeu perto de 65 milhões de famílias, já contando as 14,3 milhões do Bolsa Família. No total, até o fim do ano, o programa deverá consumir cerca de R$ 320 bilhões – o maior volume de recursos destinado pelo governo para o combate à pandemia e a seus efeitos sócio-econômicos.
É provável, porém, que o Auxílio Emergencial seja mantido sob nova configuração a partir de 2021, com o nome de Renda Cidadã, ainda que apenas para a parcela dos mais vulneráveis que receberam o benefício neste ano. Embora o governo ainda esteja buscando recursos para financiar o programa, a decisão política de implementá-lo parece já estar tomada. Com o pagamento do benefício, a popularidade do presidente Jair Bolsonaro, que vinha em queda livre, deu um salto em todo o País, especialmente no Norte e Nordeste, e ele não quer perder o apoio que conquistou, considerado fundamental para alavancar sua eventual tentativa de reeleição em 2022.
A ideia é que o Renda Cidadã funcione como uma espécie de Bolsa Família ampliado, para atender de 20 a 25 milhões de famílias, incluindo de 6 a 10 milhões que ficariam sem qualquer benefício com o fim do Auxílio Emergencial, a partir de janeiro. Pelas propostas iniciais, o valor do Renda Cidadã seria de R$ 300 por mês, inclusive para os atuais beneficiários do Bolsa Família, que recebiam, em média, R$ 193 mensais, de acordo com dados do governo, antes de serem incluídos no Auxílio Emergencial.
A questão é que, para aumentar o valor atual do benefício do Bolsa Família em cerca de 50% e ainda incorporar o contingente de vulneráveis que estava fora do programa e recebeu o coronavoucher, seriam necessários de R$ 20 bilhões a R$ 30 bilhões a mais por ano – e os recursos não estão previstos na proposta orçamentária de 2021, enviada pelo governo ao Congresso.
Para tentar viabilizar o programa, apareceram sugestões de todos os tipos. Já se falou até em furar o teto de gastos, considerado essencial para manter as contas públicas sob controle, e em usar o dinheiro de precatórios e do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).
Alguns parlamentares vieram a público defender, sem constrangimento, o prolongamento da medida que liberou os gastos do governo para o combate à pandemia ou do próprio Auxílio Emergencial, por mais três meses, em 2021. Outros propuseram a redução do valor do benefício para R$ 200 em 2021 e a sua elevação para R$ 250 em 2022 e R$ 300 em 2023.
De seu lado, a equipe econômica chegou a propor o fim do abono salarial, do seguro defeso, do salário-família, do Farmácia Popular e até da correção anual das aposentadorias e do salário mínimo pela inflação. Mas as propostas foram rechaçadas por Bolsonaro. “Não vai tirar do pobre para dar ao paupérrimo”, afirmou o presidente.
Parece difícil para Bolsonaro entender que não dá para fazer tudo ao mesmo tempo com os recursos disponíveis e dentro das regras do jogo. “O governo Bolsonaro tem dificuldade de aceitar os trade offs. Na hora de fazer escolhas, o governo trava”, diz o analista político Creomar de Souza, CEO da consultoria Dharma Political Risk & Strategy. “A percepção de Bolsonaro é que ele tem de ganhar em todos os cenários o tempo todo, e isso não é possível.”
De um jeito ou de outro, o novo programa entrou no radar, para não deixar uma parcela considerável da população de menor renda sem assistência após o fim do coronavoucher e para atender aos interesses políticos de Bolsonaro, de alguns de ministros e de seus apoiadores no Congresso. Mesmo que a medida não seja implementada de imediato, mais cedo ou mais tarde ela deverá se tornar realidade, ampliando o “colchão” social oferecido no País aos mais pobres.
5 – Contas públicas no vermelho
A trajetória de contenção dos gastos públicos, implementada pela equipe econômica no primeiro ano do governo Bolsonaro, foi interrompida bruscamente em 2020, para fazer frente às demandas de saúde e de caráter econômico e social trazidas pela pandemia.
Com a dinheirama que jorrou dos cofres do governo durante a crise, autorizada pelo Congresso por meio do chamado “orçamento de guerra”, o rombo nas contas públicas se multiplicou. Segundo as previsões dos economistas, o estrago deixado pela pandemia deverá moldar o futuro do País por no mínimo mais uma década, reduzindo os recursos disponíveis, que já são escassos, para investimentos e ações sociais.
Em 2020, de acordo com as estimativas mais recentes do Ministério da Economia, o déficit primário, que exclui o pagamento dos juros para rolagem da dívida pública, deverá ficar em quase R$ 900 bilhões, um valor equivalente a cerca de 12% do PIB (Produto Interno Bruto), um recorde histórico. Incluindo os gastos com juros da dívida, que deverão consumir em torno de R$ 300 bilhões, equivalentes a 4% do PIB, o déficit nominal chegará a cerca de R$ 1,2 trilhão, ou 16% do PIB, outra marca inédita.
Rombo crescente
Com as despesas do “orçamento de guerra” para combate à pandemia, a dívida pública deu um salto. Com esse resultado, a dívida líquida do setor público, que exclui o setor financeiro e o Banco Central, deverá fechar o ano em 67,5% do PIB, um salto de 8,1 pontos percentuais em relação ao índice de 2019. Já a dívida bruta do governo central, que havia caído 0,7 ponto do PIB no ano passado, para 75,8% do PIB, deverá chegar a cerca de 100% do PIB no fim de 2020, alcançando quase R$ 7 trilhões.
Um estudo realizado pela Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, aponta que a dívida bruta, que deveria parar de crescer neste ano ou no próximo, segundo as previsões feitas antes da pandemia, agora deverá seguir em alta até 2030, quando chegará a 117,6% do PIB, e só então começará a cair. “Se antes da crise a gente já tinha o desafio de ajustar as contas públicas e já era difícil fazer isso, depois da pandemia vai ficar ainda mais complicado, porque a União, os Estados e os municípios estarão numa situação fiscal ainda pior do que antes”, diz o economista Felipe Salto, diretor executivo da IFI.
Para evitar solavancos nos mercados, a equipe econômica tem dito que os gastos relacionados à pandemia ficarão restritos a 2020 e que, em 2021, o País retomará a política de ajuste fiscal praticada antes da crise. O Ministério da Economia também tem procurado reforçar o compromisso com a manutenção do teto dos gastos, que limita o crescimento das despesas públicas ao nível do ano anterior, corrigido pela inflação.
O problema é que a pressão para aumentar as despesas e “furar” o teto é grande, apesar de o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, também ter reforçado seu compromisso com a estabilidade fiscal. O próprio presidente Jair Bolsonaro, apesar de dizer publicamente que vai respeitar o teto, “põe pilha” nas propostas que preveem a ampliação de gastos, de olho em sua provável tentativa de reeleição em 2022.
“Não tem muita margem para erro neste cenário”, afirma Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro, que deixou o cargo em julho para se tornar sócio e economista-chefe do banco BTG Pactual, a partir de janeiro. “Se chegar a um ponto de os investidores não confiarem no governo, o prêmio de risco para colocar os títulos públicos no mercado vai ser muito alto, o juro vai subir muito e a coisa poderá ficar muito séria.”
No momento, em meio às discussões travadas no governo e no Congresso sobre o tema, é difícil cravar por quem os sinos vão dobrar. Ainda que a racionalidade econômica aponte para a necessidade de retomar o ajuste iniciado no pré-pandemia,o ímpeto gastador de alguns políticos pode prevalecer, deixando o País numa situação fiscal insustentável. O que se pode dizer desde já é que o estrago deixado nas contas públicas pela pandemia deverá continuar no centro do debate econômico do País por muito tempo, assim como no resto do mundo.
6 – ‘Desglobalização’
Com a desaceleração da economia mundial durante a pandemia, os negócios entre os países deverão fechar o ano com uma queda significativa. De acordo com estimativas da Organização Mundial do Comércio (OMC), as exportações globais em 2020 deverão ter uma redução que ficará entre 12,8%, no cenário otimista, e 32%, no cenário pessimista, em relação ao mesmo período do ano passado.Mesmo que haja uma retomada da economia mundial em 2021, dificilmente o comércio internacional voltará ao patamar do pré-pandemia. A tendência é que o retorno ao nível de 2019 se dê de forma gradual, como já aconteceu em outras crises.
Para alguns analistas, porém, o efeito da pandemia na economia global vai muito além do fluxo de comércio. Segundo eles, no auge da crise, a falta de produtos como respiradores e máscaras, fabricados em grande parte pela China, reforçou o questionamento em relação ao papel desempenhado pelas cadeias internacionais de valor nas últimas décadas. Isso levará, de acordo com tal percepção, a um aumento nos índices de nacionalização ou regionalização da produção nos próximos anos – um fenômeno chamado no jargão dos economistas de “reconversão industrial”.
“O mundo pós-pandemia não vai ser o mesmo em relação à globalização”, afirma Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor executivo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) e ex-secretário de Política Econômica do antigo Ministério da Fazenda. “Isso não significa que vamos voltar aos tempos pré-globalização. Mas o mundo em que a gente vivia, presidido pelos princípios do menor custo e do menor prazo de entrega, passará por uma reformulação. A questão estratégica agora vai fazer parte do jogo.”
De certa forma, nos últimos anos, essa guinada já vinha ocorrendo, com o acirramento da disputa geopolítica entre Estados Unidos e China. Mas a pandemia acabou alavancando, para o bem ou para o mal, a visão de que os interesses nacionais devem se sobrepor aos princípios de racionalidade econômica. “Essa ‘desglobalização’ permite que certas cadeias de produção possam voltar a países como o Brasil”, diz Tony Volpon, economista-chefe do banco suíço UBS no País e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central (BC).
No momento, ainda é difícil dizer com segurança se a “desglobalização” será um fenômeno de curta duração ou se representará uma mudança estrutural, que irá se aprofundar daqui para a frente.Em crises como a provocada pela pandemia, sempre surgem previsões sobre uma possível marcha-à-ré na globalização. Isso aconteceu também na crise financeira global, em 2008, mas, como se constatou depois, as previsões não se confirmaram e a globalização retomou o seu vigor. Nada garante, portanto, que agora não acontecerá a mesma coisa.
“No começo da pandemia, teve muito essa profecia de ‘desglobalização’ e de aumento da presença do Estado na economia, mas hoje, sete meses depois, acredito que é preciso revisar essas projeções”, afirma o economista Gustavo Franco, sócio da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do BC. “Se a gente olhar para 2021, não sei se será verdade que haverá um Estado maior e menos comércio exterior. O panorama ficou mais confuso. O impacto da pandemia é muito mais complexo do que parecia à primeira vista.”
Talvez esta crise seja diferente das outras. Talvez, o mundo, hoje, seja distinto do que era em 2008, moldado por líderes como o presidente americano, Donald Trump, derrotado pelo democrata Joe Biden nas eleições realizadas no início de novembro, e por outras autoridades populistas pelo mundo afora, que enxergam na globalização uma ameaça aos interesses nacionais. Mas, por ora, o certo é que o cenário atual, de menor fluxo comercial, deverá se manter, de uma forma ou de outra, ao menos por mais algum tempo.
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