A foto que ilustra este artigo – uma cena da construção do muro de Berlim (em 13 de agosto de 1961) – já diz muita coisa. Mas ainda é preciso explicá-la. |
Franco é autor de várias dezenas de livros e textos sobre desenvolvimento local, capital social, democracia e redes sociais. O brilhante artigo que escreveu está postado em seu site Dagobah – Inteligência Democrática.
Leia seu artigo: O que Restou do Projeto do PT para o Brasil
“Qual era o projeto do PT para o Brasil? Conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido. Era um projeto de dominação – que usava as eleições contra a democracia – levado a efeito por meio de uma guerra de posição com o objetivo de conquistar maiorias em todas as organizações do Estado, do mercado e da sociedade civil.
Ao contrário do que muitos afirmam, portanto, o projeto do PT nunca foi tomar o poder – ou assaltar o Palácio de Inverno – por meio de uma guerra de movimento, de uma insurreição ou de uma guerra popular prolongada, nem mesmo o de criar focos de insurgência para levar adiante uma revolução (entendida como tomada do poder de Estado por vias extra-legais, com a substituição das velhas elites dominantes por novos quadros revolucionários).
Não! O projeto do PT era, sempre foi, eleitoral. Ele consistia, basicamente, em ganhar as eleições para o governo central a primeira vez e, a partir daí, dominada perfeitamente a tecnologia eleitoral, aparelhar as instituições da democracia formal para ganhar eleições sucessivamente e nunca mais sair do governo até que seu objetivo fosse alcançado. Ou seja, a essência do neopopulismo lulopetista – autoritário e manipulador – é usar a democracia contra a democracia.
É importante observar essa mudança na estratégia das esquerdas, sobretudo latino-americanas, que se deu no final do século 20. Refletindo sobre seus últimos reveses nas décadas de 60 e 70, as esquerdas resolveram parasitar os regimes democráticos formais em vez de combatê-los de fora. Elas só puderam fazer isso porque descobriram uma falha “genética” na democracia dos modernos (a democracia formal e representativa realmente existente nos países que a adotam). Essa segunda forma de democracia (a primeira foi a dos atenienses, que teve seu apogeu no século 5 AEC) não tem proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia. Essa é a falha.
Com isso a esquerda pretendeu se vacinar contra as acusações de golpe que lhe eram feitas. Nada disso, diziam: queremos jogar o jogo, aceitando as regras eleitorais e respeitando formalmente o Estado de direito (a Constituição e as leis). Golpistas são os que tentam barrar nosso caminho, que é perfeitamente legal.
É claro que tais alegações só seriam verdadeiras se reduzíssemos democracia à eleição, fazendo desaparecer ou minimizando todos os demais critérios da legitimidade democrática (como a liberdade, a publicidade ou a transparência, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade) para evidenciar apenas o critério da eletividade. Uma vez chegando ao governo por via eleitoral (ou até mesmo antes disso), o partido montava um esquema de poder (quase um Estado paralelo), financiado com altas somas de recursos, para continuar no governo, ganhando uma eleição atrás da outra.
Havia porém uma falha nessa via neopopulista. O financiamento (caríssimo) desse Estado paralelo (uma espécie de Estado dentro do Estado, cujo centro era o partido) não podia ser feito por meios somente legais. Era preciso desviar recursos públicos de monta para tanto, seja através da pilhagem às empresas públicas, seja através da associação criminosa com grandes empresas privadas (usando o velho caixa 2 ou lavando o dinheiro de propina – contratos superfaturados – por meio de doações eleitorais legais), seja por meio da alocação de agentes em todos os escaninhos da administração pública (pois é praticamente impossível, sem tal aparelhamento, sustentar as dezenas de milhares de militantes que são necessários para operar ou apoiar o gigantesco esquema).
Ademais, era preciso ter grande base parlamentar para fazer isso, comprando com cargos e dinheiro vivo (mensalão), deputados, senadores e dirigentes de outros partidos (pois sem maioria no Congresso não seria possível manter estável a coalização governante e, nem mesmo, neutralizar ou sabotar as eventuais investigações legislativas sobre os crimes cometidos). E, ainda, era preciso ficar no governo tempo suficiente para aparelhar totalmente os tribunais superiores (o STJ, o TSE e o STF).
Por último, era preciso ter forte enraizamento social, em todos os setores capazes de apoiar o projeto – sem conhecer como o esquema realmente funciona -, seja por meio de financiamento legal e ilegal, seja por efeito de impregnação ideológica. Esses setores sensíveis são, entre outros: os demais partidos estatistas, os sindicatos, centrais e associações profissionais, os incorretamente chamados de movimentos sociais (que funcionam como correias de transmissão do partido), os meios artísticos e culturais (que podem ser ganhos, caso apenas a ideologia não funcione, com financiamento público via renúncia fiscal), as ONGs que passam a atuar como verdadeiras organizações neo-governamentais (financiadas também com dinheiro público), os veículos de comunicação de uma rede suja financiada ainda com recursos públicos (sobretudo via patrocínio de estatais), as áreas de ciências humanas das universidades e alguns escritórios de advocacia (que seguem a linha do falecido Consiglieri Marcio Thomaz Bastos).
O plano parece perfeito. Mas sua falha é o timing. Para fazer tudo isso e permanecer incólume, o partido estatista, que adotou a via neopopulista e que opera tal estratégia, precisa de tempo. A guerra gramscista de trincheiras é demorada, mesmo quando aliada à mais expedita e deslavada realpolitik (uma espécie de neomaquiavelismo prático, no qual os líderes neopopulistas logo se iniciaram). Ocorre que esse tempo para conquistar hegemonia não está totalmente disponível antes da conquista de hegemonia. Eis o ponto!
O risco de colapso é altíssimo. Pois pode acontecer o seguinte. As instituições do Estado democrático de direito, ainda não totalmente dominadas, começam a perceber que há alguma coisa errada. Um esquema tão grande dificilmente pode passar desapercebido. Não pode, por exemplo, evitar que algumas evidências de irregularidades e crimes venham à tona, nem pode se precaver de defecções e traições. Não propriamente em razão da fiscalização das oposições (que já estarão desfibradas a esta altura, do contrário nada disso poderia sequer dar os primeiros passos), mas em virtude de contradições no seio de sua própria base de apoio. Em algum momento aparecerá um Roberto Jefferson. É impossível também que uma operação desse porte não deixe alguma ponta solta: em outro momento surgirá um José Janene e se descobrirá a atividade ilegal de um doleiro como Youssef. Se ainda houver instituições de fiscalização e controle não completamente dominadas, os agentes do Estado de direito começarão a puxar a ponta do fio e desenrolar o novelo. Assim foi com o petrolão e a operação Lava Jato.
Bem… o resto da história é conhecido. Mas o que nos interessa agora é saber o que pode restar desse projeto quando ele entra em colapso em virtude do que foi exposto acima.
Antes de qualquer coisa é preciso ver que uma força autocrática politicamente organizada, socialmente enraizada e com uma narrativa ideológica estruturada, não se desfaz quando as condições objetivas para implantar o seu projeto desaparecem. Essa força ainda permanece enraizada em todos os setores já mencionados anteriormente. O problema é que o tempo passa rápido e se ela não quiser desaparecer tem que mudar.
E aqui chegamos no centro da questão. Para fazer as mudanças necessárias à sua sobrevivência, a força autocrática precisará continuar coesa, manter seus laços orgânicos como corpo destacado ou destacamento de combate. Ela agora precisará reformular sua narrativa: do discurso ufanista de protagonista da construção de um novo mundo, passará a fazer o discurso do perseguido, da vítima de um golpe anti-democrático desferido por seus inimigos (os conservadores, as elites, a direita, os fascistas, os coxinhas). E precisará mudar também a seu modo de ação: em vez de ofensiva, resistência (ao golpe).
No entanto, quando o suposto “golpe” for desferido pelas forças da lei, dentro das regras do Estado de direito, essa operação torna-se muito difícil, sobretudo em sociedades complexas (como a brasileira). A tendência é que uma parte da sua base de apoio – pressionada pelo seu entorno social – comece a refluir, seus representantes institucionais passem a desertar (da base para o topo, como vem ocorrendo neste momento: prefeitos e vereadores já vão abandonando o partido e, em pouco tempo, deputados, senadores e governadores tendem a seguir o mesmo caminho). Num clima de paz social (ou de normalidade institucional) é impossível evitar essa desconstituição da força neopopulista fora do governo.
Então a única saída, se não quiser se suicidar ou se esvair progressivamente, é criar um clima de guerra. Não é da natureza da via neopopulista, porém, fazer guerra quente (ou seja, partir para o combate violento), mas isso não significa que não possa fazer guerra fria (aliás, militantes da esquerda são, por definição e herança, combatentes da guerra fria), pervertendo a política como guerra (ou continuação da guerra por outros meios). Entenda-se bem: qualquer força autocrática sempre perverte a política como guerra. Mas agora será preciso escalar a intensidade do conflito para criar um clima de guerra capaz de dividir a sociedade em lados claramente definidos e em confronto. Essa clivagem, para ser eficaz, tem que atravessar todas as instituições, todas as organizações, todas as formas estáveis de sociabilidade (inclusive as famílias e outros clusters de convivência: colocando pais contra filhos, irmãos contra irmãos, esposos contra esposas, namorados contra namoradas, amigos contra amigos).
Não foi por acaso que o presidente do PT do Distrito Federal, Roberto Policarpo, declarou ontem (23/04/2016) que o partido não vai reconhecer o governo Temer: “O Temer não vai governar este país com um dia sequer de sossego. Se o Senado não barrar o golpe, nós vamos parar ele nas ruas“. Não é por acaso que os aparelhos políticos disfarçados de movimentos sociais, como o MST e o MTST, vêm declarando que vão incendiar o país, paralisar a produção e obstruir a circulação, fechando dezenas de estradas por semana, invadir propriedades produtivas, escritórios e até mesmo residências dos inimigos de classe. E também não é por acaso que Dilma, após seu afastamento temporário da presidência, na primeira votação do processo de impeachment pelo plenário do Senado, pretenda permanecer no Palácio da Alvorada transformando-o numa espécie de sede de um governo paralelo e viajando pelo país (nas aeronaves da Força Aérea Brasileira ou em quaisquer outras), para levantar e animar uma resistência popular às instituições do Estado democrático de direito.
É claro que se pode encarar tudo isso como bravata. Mas… é preciso ver que o PT não tem saída. Ou faz isso, ou tenta estabelecer – pelo menos no plano simbólico – uma dualidade de poder no país, ou vai assistir passivamente sua desconstituição progressiva (até virar uma espécie de PCdoB). Ainda que essa dualidade de poder não possa ser concreta, em termos leninianos, ela é efetiva, em termos gramscianos. Ela objetiva, simplesmente, manter coesa a força autocrática e preservar seu enraizamento num conjunto de instituições que fornecem a seiva para alimentá-la enquanto organismo social. Para tanto é necessário que sejam nítidas as fronteiras de identidade, que fique muito claro que há dois (e somente dois) lados e que quem está de um lado não pode estar do outro lado. Ou melhor, que quem não está de um lado, está do outro lado!
Nada disso tende a dar certo, menos em razão do que nos sobrou de institucionalidade não degenerada pela infestação neopopulista e mais em virtude da eferverscência de uma nova sociedade civil ou do grau de fermentação da rede social que, mesmo sem qualquer projeto de combate, tende a dissolver essas iniciativas autocratizantes na medida em que produz quantidades consideráveis de anticorpos (de paz e de amizade) nas ruas, nas praças e nos aglomerados de convivência que precisam ser contaminados com um ethos adversarial (de guerra e de inimizade) para manter vivo esse estranho organismo social que veio de algum lugar do passado para nos assombrar. Mas o fato dessa tentativa de sobrevivência do quisto autoritário tender a não dar certo, não significa que ela não possa nos causar ainda muito sofrimento.
Pois mal. O que restou do projeto do PT foi construir um muro no espaço-tempo dos fluxos, para obstruir o livre curso da convivência social, separando os de cá contra os de lá. Irônica e cruel se revela, no rebote, a mesma falha de projeto: a questão do tempo, a dessincronia profunda, o desespero de um imaginário que não pode ser reificado a não ser como farsa.
Helás! Eis que as cabeças dentro das quais o muro de Berlim ainda não caiu são compelidas a construir e reconstruir muros em todo lugar. Interromper essa reprodução é o principal desafio da nossa democracia nos tempos que virão.
Discussion about this post