Nasci em setembro. Ainda com dias de nascido, fui ao meu primeiro Círio. De lá pra cá, 26 anos depois, fui em todos. É uma promessa que se deu também com meus dois irmãos. Nunca houve um ano de nossas vidas em que não fomos, por volta das 6 horas da manhã, no sábado, para Augusto Montenegro ver uma das procissões.
Já fui ateu, tentei ser agnóstico, já tive estima pelo budismo, já participei de células evangélicas, convivi com pessoas da umbanda, mesmo assim, em todos esses anos, levantei minhas mãos quando a berlinda passou, as vezes sem fé, é verdade, mas levantei e senti algo que vai muito além de qualquer religião.
Nos anos de 2016 e 2017, fui na corda da trasladação. Passei por todo sufoco e entendi o quanto nosso povo é devoto. Lembro do quanto fui forte por aguentar até a frente da Estação das Docas, quando alguém puxou uma faca e uma tosca briga por pedaços da corda começou. A sensação de pressão, no peito e nas costas, continuaram por longas semanas, mas ainda assim pareciam não doer, é como se fossem um portal para reviver todos aqueles momentos de comunhão com tantos desconhecidos, se ajudando na água, no espaço, no socorro.
No domingo de Círio, geralmente, você encontra todo mundo por lá, quem você queria e quem não queria ver, do amigo da escola até uma parente que não via há anos. Você vê de perto o que as pessoas fazem em nome da promessa. Os joelhos no chão, os choros de alívio, o pedido, a prece, o olhar para dentro e para fora, mesmo com os olhos fechados.
Já voltei do Círio no ônibus lotado, com todo mundo brincando, mesmo com um engarrafamento interminável. Já fui motorista de aplicativo durante o Círio. Faturei. Cheguei até a entrar, sem querer, em uma rua proibida e bloqueada pela Semob, mas, talvez pelo espírito de Círio, estranhamente o agente não me multou, pelo contrário, me ajudou a sair e ainda deu Bom Dia.
Pra você ver como é algo poderoso. Não é difícil concluir que faz bem para nossa cidade. As pessoas até parece que ficam mais mansas.
No Círio, a vizinhança se une como não o faz no restante do ano. Cada um dá um pouco e compramos fogos de artifício. No dia certo, alguns montam os fogos, outros enfeitam com balões, alguns só aparecem para dar o apoio moral, mas o bacana é que é algo coletivo em meio a um panorama social cada vez mais individualista.
Já fui roubado no Círio. Sou apaixonado pela Dira Paes e enquanto tentava olhar para ela, no pequeno descuido de 10 segundos, levaram minha carteira que à época tinha apenas 2 reais e uma carteira de meia-passagem. Então, além de tudo, aprendemos a ficar sempre atentos durante a aglomeração. Já no começo dos anos 2000, era muito forte o conflito entre gangues, então como a procissão juntava diversos bairros, era esperado o porradal depois de 1 hora da passagem da Santa. Chegou a haver mortes. É o lado vergonhoso. Sempre tem.
Círio é a chegada de parentes de longe, é a comida típica, é a oportunidade econômica, é a lágrima de emoção, é o encontro, a família, a fé, um estado de bondade, a irreverência, o assalto, a cultura, a nossa identidade!
Ainda não caiu a ficha que não teremos este ano. Já era provável, mas ninguém estava preparado para esta conversa. Além do mais, nunca precisamos tanto do Círio como neste ano. 2020 é definitivamente o ano de muitas reflexões, estranheza e dor. Uma prova.
Então, que venha o Círio 2021.
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