As mesmas distorções mentais que alimentam o fanatismo e a crueldade podem, em certas circunstâncias, sustentar a fé, a coragem e a solidariedade. O cérebro humano não é moral — é apenas humano.
O cérebro humano é um engenho imperfeito. Erra, distorce, simplifica, se engana — e ainda assim cria beleza, ciência e civilização. Essas falhas, conhecidas como disfunções cognitivas, são mecanismos automáticos que moldam nossa percepção do mundo. Costumamos vê-las apenas como defeitos — mas elas são, ao mesmo tempo, a fonte do mal e o motor do bem.
Após a Segunda Guerra Mundial, os julgamentos de Nuremberg revelaram algo terrível: os arquitetos do Holocausto não eram monstros, mas homens comuns que haviam desativado o senso moral. O psicólogo Albert Bandura chamaria isso, mais tarde, de desengajamento moral — a capacidade de justificar o injustificável.
Essa distorção não desapareceu com o nazismo. Ela reaparece sempre que um servidor público acoberta corrupção “porque todos fazem”, ou quando um cidadão aceita a violência policial “porque é contra bandido”. É o raciocínio que naturaliza o mal, dissolvendo a culpa em burocracia, ideologia ou medo.
Mas há um paradoxo: o mesmo mecanismo pode ter função protetora. Médicos, socorristas e bombeiros muitas vezes precisam suspender temporariamente a empatia para agir sob pressão. O desligamento emocional, que em um contexto gera crueldade, em outro salva vidas.
Crença cega ou esperança necessária
O viés de confirmação — tendência de acreditar apenas no que reforça nossas convicções — é uma das raízes da polarização contemporânea. Ele alimenta teorias conspiratórias, intolerância e cegueira ideológica.
Mas foi essa mesma persistência cognitiva que manteve viva a chama de quem sonhou com o impossível. Nelson Mandela acreditou na reconciliação racial mesmo nas masmorras do apartheid. Martin Luther King sonhou com igualdade num tempo em que ela parecia utopia. Suas mentes, guiadas por uma crença obstinada, desafiaram a lógica.
A disfunção que aprisiona alguns em bolhas de ódio pode, em outros, ser a força moral que move montanhas.
Daniel Kahneman, Prêmio Nobel, descreveu a ilusão de controle como o erro humano mais persistente: acreditar que temos domínio sobre o acaso. Essa distorção sustenta decisões desastrosas — guerras lançadas sob certezas infundadas, economias arruinadas por arrogância.
Ainda assim, é ela que impulsiona a criatividade e a inovação. Edison, Santos Dumont e Marie Curie não teriam avançado sem um grau de delírio, sem a convicção irracional de que poderiam mudar o curso da história.
A diferença entre o tirano e o visionário é o uso que fazem dessa ilusão: um a utiliza para dominar; o outro, para construir.
A tribo e o mundo
O viés de grupo — o instinto de proteger quem se parece conosco — é uma herança evolutiva. Ele explica a solidariedade entre iguais, mas também o racismo e as guerras étnicas. Sem esse instinto, não haveria comunidade. Com ele em excesso, não há humanidade.
Sociedades saudáveis aprendem a ampliar o círculo do “nós”. A empatia, afinal, é o antídoto contra a disfunção tribal.
Carl Jung dizia que “ninguém se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas tornando consciente a escuridão”. Essa escuridão é, em boa parte, cognitiva — feita de ilusões, vieses e defesas psicológicas. Ignorá-las é perigoso; compreendê-las é um exercício de maturidade.
O cérebro humano não é moral. É um instrumento moldável, que tanto pode justificar o mal quanto inspirar o bem. As disfunções cognitivas — esses “erros” da mente — podem gerar o fanático e o santo, o covarde e o herói.
A diferença está na consciência. Em reconhecer o erro, e ainda assim escolher o caminho que serve à vida.
A verdadeira lucidez não está em eliminar as disfunções, mas em dialogar com elas — transformando o medo em prudência, a teimosia em persistência, a ilusão em esperança. A mente humana é imperfeita, mas é essa imperfeição que nos torna capazes de criar, amar e lutar. O desafio é manter o erro a serviço da dignidade — e não do poder.
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