Decisão atende a pedidos do MPF em ação que trata de área onde ribeirinhos vivem há mais de 150 anos
A Justiça Federal anulou uma fraude que levou à apropriação ilegal – a chamada grilagem – de quase 563 mil hectares (cada hectare tem uma área aproximada de um campo oficial de futebol) no sudoeste do Pará. A área é ocupada por povos tradicionais. Por causa da fraude, essas comunidades vinham enfrentando ameaças de expulsão e tentativas de invasão de suas terras.
Proferida no último dia 17, a sentença anulou a documentação fraudulenta, declarou a área como de dominialidade pública federal e condenou as empresas Madeireira São João, Agricultura e Pecuária Irmãos Marochi e Brasnort Administração de Imóveis e Colonização ao pagamento de R$ 100 mil por danos morais coletivos.
A sentença também confirmou a decisão urgente (liminar) publicada em 2006, ano em que o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou a ação. A decisão liminar proibiu réus de tentar tomar posse da área, tornou indisponíveis as matrículas das terras griladas, além de ter suspendido processos de regularização fundiária dessas áreas.
“A conduta aqui analisada envolve décadas de alienações ilegais, erro cartório, judiciário, administrativo, além da má-fé dos requeridos mediante violação da higidez [conformidade legal] do sistema registral, necessário para a garantia de segurança jurídica a diversas relações. Portanto, trata-se de uma série de omissões e ações praticadas por particulares, cujos prejuízos econômicos, sociais e ambientais se prolongaram por décadas (…)”, registra a sentença.
Proteção a Montanha e Mangabal – Entre as comunidades tradicionais prejudicadas pela grilagem está a das famílias de ribeirinhos – também chamados de beiradeiros – do projeto de assentamento agroextrativista Montanha e Mangabal, em Itaituba (PA), que tem área de 54,4 mil hectares.
Durante as investigações que deram origem à ação judicial, o MPF coordenou a elaboração de um levantamento socio-ocupacional da população de Montanha e Mangabal executado pelos pesquisadores Wilsea Figueiredo e Maurício Torres, da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Para provar que a posse da terra é coletiva, foram feitas árvores genealógicas até a 8ª geração de ascendentes de moradores da comunidade. Os beiradeiros são descendentes de antigos seringueiros atraídos para a Amazônia pela febre da borracha no século 19 e ocupam a área há pelo menos 150 anos.
Outra vertente do estudo foi a ambiental. O relatório final indicou que as famílias estimulam a biodiversidade, principalmente ao buscarem cultivar grandes variedades de espécies de plantas. Só de mandioca são utilizadas mais de 30 espécies, cada uma para usos nutricionais e medicinais diferenciados.
A pesquisa encomendada pelo MPF foi avaliada pelo professor de Direito da UFPA José Heder Benatti, doutor em Desenvolvimento Socioambiental, que deu parecer confirmando a posse coletiva da terra. A ação do MPF também contou com a contribuição da consultoria jurídica do então Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Trechos da decisão
“Desse modo, verificada a nulidade do título causal de domínio, conclui-se pela inexorável insubsistência das escrituras ou registros pelos quais tenham sido titularizados tais imóveis, inclusive, a sua inscrição no registro Torrens não deve subsistir. Desse modo, fica patente a nulidade de tais registros de propriedades
ora acobertadas pelo Registro Torrens, tendo em vista o patente o descumprimento da legislação agrária paraense e nacional no tocante a transmissão das propriedades em face da ausência de comprovação do destacamento de tais áreas do patrimônio público.
E, notadamente, pela caracterização de propriedade meramente especulativa, diante do reconhecimento da existência de comunidades ribeirinhas centenárias na área, além de conflitos fundiários com famílias de agricultores que também remontam largo lapso temporal.
Ademais, a fragilidade do processo dos torrens, que sequer se tem notícia confirmada de sua existência física, corrobora ainda a inidoneidade dos imóveis ora questionados como patrimônio particular, além da posterior multiplicação das áreas dos imóveis originalmente submetidos ao referido processo. Ressalta-se que a existência de certidão de legitimação de posse e termos de exclusão de terra públicas expedidas pelo INCRA em 1982 alegadas pelos requeridos lhes foram, erroneamente, conferidas em razão da fraude ora relatada, que permitiu a exclusão da posse Quatro Irmãos da Ação Discriminatória da Gleba Parauari em virtude da existência das sentenças Torrens ora desconstituídas.
Nesse contexto, restou claro que a posse de todos os Réus sobre a área objeto do litígio é ilícita, e de má-fé, uma vez que inexiste respaldo jurídico que fundamente o efetivo destacamento dos títulos de propriedade ostentados sobre bem imóvel da União, circunstância da qual não decorre nenhum direito de retenção, tampouco, eventual aquisição por meio do instituto da usucapião, alegado pelos requeridos e, notadamente, rechaçado pelos tribunais pátrios, no contexto de propriedade pública. Portanto, alegação de existência de cadastramento de imóvel junto à Receita Federal, aquisição da propriedade de boa fé (fé pública cartorária, recolhimento de fundo de garantia Torrens, declaração de posse, Cadastro Ambiental Rural entre outros), investimentos dos requeridos nos imóveis, eventual execução de manejo sustentável, alegados pelos requeridos, são insuficientes para afastar a ilegalidade da situação ora desconstituída.
Outra não pode ser a conclusão, senão o reconhecimento da inexistência das sentenças dos processos Torrens e das matrículas impugnadas, operando efeitos ex tunc, desconstituindo-se todas as situações anteriores geradas a partir de sua edição, restaurando-se a situação anterior, como se tais atos jamais tivessem existido, assegurando o direito à União a registrar a área obstruída por essa fraude fundiária”. (Do Ver-o-Fato, com informações da Ascom do MPF no Pará)
Processo nº 0000512-39.2006.4.01.3902 – Vara Federal Cível e Criminal da Justiça Federal em Itaituba (PA)