Uma decisão da 1ª Vara Cível da Barra da Tijuca, proferida em 12 de maio de 2025, condenou dois dentistas por negligência após uma paciente, Maria Cristina Soares, de 62 anos, passar quatro meses com parte de uma broca cirúrgica alojada em seu crânio sem saber. A descoberta ocorreu após fortes dores de cabeça, transformando o que deveria ser uma simples extração dentária em um verdadeiro drama.
Maria Cristina relatou o perigo que correu: “O mais grave não foi o erro em si. Erros acontecem. O problema foi a negligência. Eu voltei várias vezes ao consultório da doutora, fui atendida por ela em outras demandas, mas ninguém me avisou nada. Fiquei 4 meses com a broca na face”. A paciente ainda enfatizou: “Eu sentia muita dor de cabeça e não sabia o motivo. Mas os riscos eram sérios. Eu poderia ter aspirado a broca e ela ir para o pulmão, ou ser engolida e perfurar o intestino”. Médicos consultados por Cristina confirmaram que o pedaço de metal de 1,2 cm poderia ter parado em seu pulmão caso fosse aspirado, aumentando o risco de morte.
O Procedimento e a Descoberta
O calvário de Maria Cristina começou em 23 de junho de 2022, quando ela buscou atendimento odontológico para extrair um dente com raiz fraturada. O procedimento foi agendado com a dentista Priscilla Bittencourt Palladino Monteiro, mas quem realizou a extração foi o dentista Lucas Tetsuya Murai, chamado por Priscilla para assumir o procedimento. Cristina autorizou a participação de Lucas, confiando na indicação da dentista Priscilla.
O problema surgiu durante a cirurgia, quando a broca utilizada quebrou e desapareceu. Cristina, deitada na cadeira, ouviu o dentista Lucas comentar com Priscilla que não conseguia localizar a broca. “Durante o procedimento, ele demonstrou preocupação porque não estava encontrando a broca. A secretária chegou a entrar na sala para ajudar a procurar, achando que poderia ter caído no chão. A dentista, no entanto, desviou o assunto, minimizou a situação e disse que a broca poderia ter sido sugada ou ido para o lixo”, contou a paciente. Segundo Cristina, Lucas demonstrava preocupação, mas era silenciado por Priscilla, que a tranquilizou sem pedir nenhum raio-x para verificar o paradeiro do objeto. “Ela me tranquilizou, mas não pediu nenhum raio-x para verificar se a broca poderia ter ido para outra parte do meu rosto. A broca foi como uma flecha e acabou alojada atrás do meu nariz. Mas eu não sabia”, lembrou Cristina.
A extração dentária foi traumática, com hematomas e dores, que Cristina inicialmente atribuiu à complexidade do dente. Ela chegou a retornar ao consultório para outros procedimentos em julho daquele ano e, sem desconfiar do objeto em sua cabeça, viajou para a Europa. Foi em Portugal, em setembro, que as dores intensas a fizeram buscar outro profissional. “Viajei para Portugal por uns 20 dias e comecei a sentir muita dor. Ninguém falava nada sobre a broca. Eu estava completamente ignorante sobre o que estava acontecendo. Quatro meses depois, procurei meu dentista antigo, na Tijuca. Ele pediu um raio-x panorâmico e, na hora, viu a broca”, relatou.
O raio-x panorâmico revelou um objeto metálico na região da maxila, posteriormente confirmado por tomografias que identificaram um corpo estranho metálico de 1,2 cm na nasofaringe, a região posterior do nariz.
Cirurgia Frustrada e Recuperação
Após a identificação da broca, Cristina procurou um cirurgião bucomaxilofacial, que indicou a necessidade de cirurgia com anestesia geral para remoção do objeto. A cirurgia, que deveria durar menos de uma hora, se estendeu por quase três, com o uso de aparelho de vídeo endoscopia e a participação de outros cirurgiões. Apesar da busca intensiva, a broca não foi localizada nem retirada diretamente pelos médicos. “Depois, fiz tomografias do corpo inteiro para ver se a broca tinha se deslocado. Fiz muitos exames, inclusive raio-x de todo o corpo e nada”, disse Cristina.
Uma tomografia do crânio realizada em 25 de outubro de 2022, contudo, constatou que o corpo estranho metálico “Não mais se observa (…) na fossa nasal esquerda”, indicando que o objeto foi removido, embora sem visualização ou extração direta durante a cirurgia. O pós-operatório foi extremamente doloroso, e Cristina relatou ter vivido com o medo de que o objeto ainda estivesse em seu corpo.
A Condenação e o Valor da Indenização
A Justiça, por meio do juiz Arthur Eduardo Magalhaes Ferreira, da 1ª Vara Cível da Barra da Tijuca, reconheceu a responsabilidade dos profissionais envolvidos. Embora a responsabilidade de profissionais liberais dependa da comprovação de culpa, o juiz considerou a presença do corpo estranho após a cirurgia como um fato incontestável. A quebra da broca não foi negada, e o magistrado entendeu que os dentistas deveriam ter tomado todas as providências para localizar o objeto.
Ambos os dentistas foram considerados responsáveis, inclusive Lucas Tetsuya Murai, que, em seu depoimento à Justiça, tentou se eximir por não ser o titular do atendimento. O juiz destacou que os danos morais ultrapassaram o mero aborrecimento, considerando a dor, o sofrimento, a idade da paciente e os riscos à sua saúde.
A sentença determinou o pagamento de:
- R$ 1.240 mil por danos materiais;
- R$ 8 mil por danos morais;
- e despesas processuais e honorários advocatícios de 10% sobre o valor da condenação.
Contudo, o advogado de Maria Cristina, Daniel Blanck, considerou o valor da indenização por danos morais muito baixo diante da gravidade do ocorrido. “Acreditamos que é possível alcançar um valor mais justo, que reflita a gravidade do ocorrido e sirva de exemplo para evitar que situações como essa se repitam”, afirmou Blanck. Ele também ressaltou: “Em nenhum momento do processo os réus negaram que a broca havia desaparecido. O juiz reconheceu que houve responsabilidade subjetiva e entendeu que a conduta dos profissionais foi omissiva e negligente”. A defesa de Cristina já anunciou que irá recorrer da decisão em busca de um valor mais justo.

Do Ver-o-Fato, com informações do G1