As leis e práticas de regularização fundiária do governo do estado do Pará permitem a privatização de áreas formadas majoritariamente por florestas públicas, além de autorizarem a titulação de terras desmatadas recentemente de forma ilegal. Há também uma brecha na legislação para privatizar terras públicas ocupadas a qualquer tempo, inclusive futuramente, sem a necessidade de uso produtivo da área, o que pode abrir espaço para titulação de áreas ocupadas para fins especulativos.
Esses fatores acabam favorecendo a ocupação ilegal de áreas públicas do estado, muitas vezes associada ao desmatamento ilegal. É o que concluiu o relatório “Leis e práticas de regularização fundiária no estado do Pará”, produzido pelo Imazon e lançado no último dia 24.
No estudo, os pesquisadores levantaram dados relativos ao período entre 2016 e 2020 e analisaram a atuação do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) através da identificação das principais modalidades de regularização fundiária executadas pelo órgão estadual e das práticas adotadas para aplicar a legislação vigente.
O Iterpa é responsável pela execução das políticas de regularização fundiária, incluindo doação e venda de terra pública, criação de Projetos de Assentamento e titulação de Territórios Quilombolas em áreas públicas estaduais no Pará. O estudo identificou que o órgão está aprimorando seus procedimentos internos e modernizando suas práticas desde 2017. No entanto, conforme a pesquisa, não existe na esfera estadual no Pará um mecanismo que permita o acompanhamento das ações do Iterpa para regularização fundiária.
“Isso amplia a dificuldade de controle social nas ações do órgão, já que este não divulga informações de suas ações e resultados de forma satisfatória”, informa o relatório. Até 2020, quando o estudo foi concluído, o órgão ainda divulgava menos de um terço de seus dados públicos sobre regularização fundiária de forma satisfatória.
Os pesquisadores do Imazon estimaram que 27% do território do Pará representa áreas não destinadas ou sem informação sobre destinação. Cerca de 12% dessa área está inscrita no CAR (Cadastro Ambiental Rural), mas, devido à ausência de informações sobre a situação fundiária desses imóveis, é possível que muitos sejam ocupações em terras públicas sem titulação.
Segundo o relatório, uma das medidas que precisam ser priorizadas pelo governo estadual é a criação de um comitê interinstitucional para monitoramento das ações de regularização fundiária pelo governo, com a participação de instituições da sociedade civil, academia, Ministério Público e governo federal. Isso porque permitir maior controle social pode reduzir o risco de privatização de áreas que possuem outras prioridades legais e possibilitar um ambiente de colaboração para aumentar a eficácia das ações com as devidas salvaguardas.
Essa sugestão foi enviada ao governo do estado por dezenas de instituições paraenses em 2020, mas não foi adotada pelo decreto fundiário publicado em dezembro de 2020. Uma alternativa à criação de um novo comitê seria ampliar a função e composição de uma Câmara criada pelo governo em 2020, que vai auxiliar na tomada de decisão inicial sobre destinação de terras públicas, mas que não acompanhará todas as ações do Iterpa. A chamada Câmara Técnica de Identificação, Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas estaduais poderia ser redesenhada para ser essa instância de monitoramento frequente das ações do Iterpa. Mas para isso, precisa ampliar sua composição para incluir organizações da sociedade civil que atuam na agenda de conservação florestal, já que há demandas de regularização fundiária em áreas de florestas públicas.
Além disso, o estudo ressalta que é necessário alterar a lei para vedar a privatização de áreas de florestas estaduais. Apesar de o Decreto publicado em 2020 impedir a venda de áreas que possuem 100% de cobertura florestal, a regra não proíbe a venda de áreas formadas em sua maior parte por floresta (por exemplo, 98% de florestas).
Os autores defendem que esses casos devem ser destinados ao reconhecimento de demandas territoriais de comunidades tradicionais e à criação de unidades de conservação. Se não houver tais demandas, as áreas podem ser destinadas à concessão florestal via licitação para escolha de empresas.
Porém, a lei estadual acaba permitindo a prática de concessão dessas áreas sem processo licitatório em uma modalidade chamada de concessão de direito real de uso. “Permitir concessões de áreas de floresta sem licitação cria uma contradição com a lei federal de gestão de florestas públicas de 2006. Essa lei foi criada justamente para impedir que as florestas públicas sejam invadidas e para valorizar o uso produtivo de florestas de forma sustentável, valorizando o princípio constitucional da livre concorrência ao demandar licitação. Entendemos que há um conflito na lei de terras do Pará com a possibilidade de concessão de direito real de uso em áreas de florestas públicas sem processo licitatório”, afirma Brenda Brito, coordenadora do estudo.
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