A procuradora da República no Pará, Meliza Alves Pessoa, ofereceu denúncia à Justiça Federal contra quatro pessoas arroladas em fraudes, uso de documentos falsos e corrupção pela empresa Agropalma, apontada nas investigações realizadas pela Polícia Federal como envolvida na grilagem de 106 mil hectares de terras privadas e públicas localizadas entre os municípios do Acará, Moju e Tailândia.
Os denunciados são o ex-presidente da Agropalma, José Hilário Rodrigues de Freitas, a cartorária Maria do Socorro Puga de Oliveira dos Santos, o cartorário Francisco Valdete Rosa do Carmo, além do agrimensor Clóvis Ivan Bastos Braga. Eles são acusados pelo MPF de integrarem uma “organização criminosa, por meio da qual sustentavam uma rede de corrupção voltada à prática de fraudes documentais e à utilização de documentos falsos perante o Incra, Iterpa e a Receita Federal, com o propósito de apropriarem-se de terras que não lhes pertenciam, em benefício do Grupo Agropalma”.
Outros dois envolvidos ligados ao esquema, o ex-gerente-geral da Agropalma, Antônio Pereira da Silva, e Antônio Pinto Lobato, filho da denunciada Maria do Socorro de Oliveira dos Santos, não foram arrolados na denúncia do MPF, porque morreram de Covid-19, entre janeiro e fevereiro deste ano. O Ver-o-Fato teve acesso à íntegra da denúncia e o que se observa no conteúdo da manifestação do fiscal da lei é uma cadeia de trapaças que envolve agentes públicos e privados em diversos crimes.
A ação penal tramita pelas mãos do juiz Antônio Carlos Campelo, da 4ª Vara Federal de Belém. Campelo, aliás, faz meses, recebeu pedido para que seja determinada busca e apreensão de 16 processos sobre as terras griladas que ainda dormem nas gavetas do Instituto de Terras do Pará (Iterpa), mas até agora ainda não decidiu. O juiz também ainda não tomou nenhuma providência contra o Banco Santander, que simplesmente ignorou pedido da Polícia Federal de apreensão de dois cheques que serviram para pagar propina ao cartorário Francisco Valdete do Carmo para que ele registrasse documentos falsos das terras, no cartório do Acará, em favor da Agropalma.
Vantagem indevida
Segundo a denúncia da procuradora do MPF, entre os anos de 2005 e 2017, José Hilário Rodrigues de Freitas, Maria do Socorro Puga de Oliveira dos Santos, Francisco Valdete Rosa do Carmo e Clóvis Ivan Bastos Braga, por “vontades livres e conscientes, associaram-se a Antônio Pereira da Silva e a Antônio Pinto Lobato Filho – ambos já falecidos – para, mediante recebimento de vantagem indevida e sucessivas falsificações e utilizações de documentos públicos e particulares, conferirem aparente legalidade a ocupações indevidas de propriedades rurais, promovidas em benefício de empresas do Grupo Agropalma, junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ao Instituto de Terras do Estado do Pará (Iterpa) e à Receita Federal. Em razão disso, praticaram os crimes previstos nos artigos 299 e 304, do Código Penal, e no artigo 2º da Lei nº 12.850/2013.
O artigo 299 do Código Penal diz que é crime “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:
A pena é de prisão de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular”. O artigo 304, trata do uso de documento falso, enquanto o artigo 2º da lei 12.850 define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal. Esse artigo também acolhe a delação premiada.
Em vista disso – narra a denúncia do MPF -, ainda no âmbito da organização criminosa, em 2011, Francisco Valdete do Carmo, valendo-se de suas funções públicas enquanto titular do Cartório de Registro de Imóveis do Município do Acará, “recebeu vantagem indevida oferecida por Antônio Pereira da Silva para restaurar livros cartorários em desconformidade com a realidade, em franca violação a dever funcional, motivo por que incorreu no crime de corrupção passiva majorada, descrito no artigo 317, parágrafo 1º, do Código Penal”.
Para a procuradora da República Meliza Alves, as condutas criminosas narradas têm como pano de fundo o que ela chama de “caos fundiário existente no Estado do Pará, reflexo da apropriação indevida de terras públicas e particulares, fenômeno popularmente denominado de “grilagem”, que caracteriza o processo de ocupação do Brasil e, em particular, da região amazônica”.
Sabe-se que, modernamente, os “grileiros”, diz ela, além de “corromperem agentes cartorários, confeccionam mapas baseados em imagens de satélite, GPS e estudos de georreferenciamento irreais, que substituem a ação dos grilos. E de posse desses documentos, incluindo registros imobiliários viciados, recorrem aos órgãos fundiários do governo (Incra, na esfera federal, e órgãos de controle estaduais) e à Receita Federal, com objetivo de dar aparente legalidade ao processo de ocupação irregular de terras, por meio do cruzamento de registros. É nesse contexto que se enquadram as investigações empreendidas no inquérito policial e medidas cautelares que instruem a presente denúncia”.
Cartório “fantasma”
O histórico da investigação e a “Operação Apate”, realizada pela Polícia Federal no Pará, deram origem à instauração do inquérito para apurar delitos de falsificação de documentos públicos, falsidade ideológica, uso de documentos falsos e associação criminosa, praticados por representantes da empresa Agropalma junto ao Incra, Iterpa e a outras instituições, com o objetivo de conferir aparente legalidade à ocupação ilícita de propriedades rurais pela empresa.
Ao longo das investigações, descobriu-se que o então presidente Agropalma, José Hilário Rodrigues de Freitas e o gerente-geral da empresa, Antônio Pereira da Silva, começaram processos de certificação junto ao Incra, instruídos com estudos de georreferenciamento irreais e documentos emitidos por cartórios fictícios, em esquema que contaria com a participação de grileiros, agrimensores e agentes cartorários.
“ Outrossim, apurou-se que, na origem, entre os anos de 2004 e 2008, Maria do Socorro Oliveira dos Santos e seu filho, Antônio Pinto Lobato Filho, forjaram certidões de propriedades de imóveis rurais, atestando-os como pertencentes a empresas do Grupo Agropalma. Para tanto, inicialmente, constatou-se que os denunciados valeram-se da Serventia do Único Ofício do Acará, do qual Maria do Socorro era titular, e, após a sua destituição por suspeita de fraude, por meio da Portaria nº 05, de 27 de outubro de 2005, criaram um cartório fictício, chamado Cartório Oliveira Santos, o qual passou a emitir as certidões falsas”, salienta a denúncia do MPF.
Mais adiante, a peça que sustenta a ação penal informa que, de posse dos documentos falsos, representantes da Agropalma, seguindo ordens de José Hilário e Antônio Pereira, “dirigiam-se a cartórios de notas, especialmente ao 2° Ofício de Notas (Cartório Diniz), localizado em Belém, onde faziam constar, em escrituras públicas, a completa cadeia dominial dos imóveis atingidos pela fraude, sempre registrando, ao final, a propriedade em nome de empresas integrantes do aludido grupo econômico. Finalmente, observou-se que, munidos dos títulos translativos, esses representantes retornavam ao Cartório do Acará, para requererem ao tabelião responsável, o denunciado Franscisco Valdete, o cumprimento do disposto na Portaria nº 082/2010 do Tribunal de Justiça do Pará, que havia permitido restauração de livros extraviados naquela representação, com base em documentos comprobatórios de propriedade, ainda que apresentados pelos próprios titulares das terras”.
Observa a fiscal da lei que, com os expedientes ilícitos acima narrados, a Agropalma, por meio dos denunciados, deu início a sucessivas tentativas de “legalização”, junto ao Iterpa e ao Incra, mediante a apresentação de documentos falsos, de diversas propriedades rurais, dentre as quais: Fazendas Três Estrelas, Paraíso do Norte, Sempre Alegre, Roda de Fogo, Palmares, Porto Alto, Amapalma, Amapalma 01, Galileia, e Trevo.
O esquema criminoso, resume Meliza Alves, tem como base “relevante substrato probatório”, consubstanciado, a princípio, nas declarações do noticiante José Maria Tabaranã da Costa Júnior e das funcionárias do Cartório do Acará Wenia Dayane da Costa Feitosa, Aurilene do Socorro Lima Santos e Tânia Maria Dias da Silva, além de informações cadastrais de 11 fazendas fornecidas pelo Incra e que supostamente pertenceriam à Agropalma, nos Sistemas SNCR e SIGEF, que “revelam diversas incongruências entre si”. Há também cópia de decisão da Corregedoria de Justiça das Comarcas do Interior, do TJ do Pará, proferida em 11/6/2018, no processo 2017.7.003914-3, que apurou irregularidades em matrículas abertas nos Cartórios de Registro de Imóveis dos municípios do Acará, Tomé-Açu, Tailândia e Moju.
A denúncia é extensa e nela há inclusive depoimentos dos denunciados. Mas isso é assunto para outras matérias do Ver-o-Fato sobre esta monumental fraude de terras.
Amanhã, tem mais.