Em Pau D’Arco, os sinais do massacre: Incra se mantém inerte até hoje |
Em meio ao agitado início de governo do presidente Jair Bolsonaro, o anúncio da paralisação da reforma agrária, que abarcou também o fim da demarcação de territórios quilombolas, pegou a todos de surpresa. Por mais que a medida já fosse aguardada, sua tomada não era esperada já no terceiro dia de atuação do novo governante, tampouco se imaginava que seria realizada sem qualquer estudo, avaliação ou diálogo.
A determinação partiu da Diretoria de Obtenção do Incra, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, que ordenou aos servidores a paralisação de todos os processos de aquisição e desapropriação de terras para o cumprimento do programa nacional de reforma agrária no Brasil, e sem prazo determinado para o retorno. A medida atingiria centenas de processos em andamento. Ou, para contemplar todos os lados, 250 conforme o instituto e 365 segundo o MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Entretanto, tamanha foi a repercussão da medida que na mesma semana um novo memorando suspendeu a determinação do anterior, voltando atrás na interrupção dos processos de compra e desapropriação de terras no País. Ocorre, porém, que o impasse que envolve a questão se tornou de conhecimento público e segue agora como ponto de atenção para diversos segmentos da sociedade, que se preocupam desde o fim da destinação de terras às famílias até com o acirramento da tensão e da violência no campo (protestos, invasões, etc.).
Já na pauta do brasileiro, são frequentes as manchetes noticiando mortes em enfrentamentos violentos entre acampados, donos de propriedades rurais e a polícia. O problema vem do modelo de colonização do nosso País e envolve questões como a concentração fundiária desigual e a gritante má distribuição de renda. Deste modo, o fim de políticas públicas de tentativa de minimização desta realidade faz soar o alarme vermelho, e não por acaso.
Demora e pedido judicial
No último dia 16, o proprietário da Fazenda Santa Lúcia, situada no sudeste do Pará, protocolou pedido de revigoramento da liminar de reintegração de posse, na tentativa de reaver o imóvel hoje ocupado por cerca de 200 famílias acampadas. A fazenda é a mesma que, em 2017, foi cenário daquele que ficou conhecido como o “Massacre de Pau D’Arco” – a segunda maior chacina campesina do País, atrás somente da ocorrida em Eldorado do Carajás, em 1996, quando 19 sem-terras foram mortos também pela polícia paraense.
Durante uma ação policial, que foi até o acampamento erguido pelos ocupantes da Fazenda Santa Lúcia, sob o argumento de cumprir mandados de prisão contra posseiros, houve um suposto confronto que resultou na morte de dez trabalhadores rurais sem-terra. Os sobreviventes dizem que a polícia chegou para matar. Do outro lado, os policiais sustentam que foram recebidos a tiros e apenas revidaram. Até hoje as investigações acerca do caso se desenrolam na Justiça.
Toda esta tragédia tem como pano de fundo a lentidão e a burocracia de processos no Incra, conforme argumenta o advogado especialista em questões agrárias Ailtamar Carlos da Silva. “O que só se agrava com os impasses e as incertezas que hoje cercam o órgão.” À frente da negociação entre o instituto e a propriedade privada desde 2015, Ailtamar recorda que, após sucessivas invasões, houve um acordo de valores sobre a compra da fazenda ainda no ano de 2017, o que nunca se concretizou.
“Trata-se de um processo negocial, afinal a fazenda era produtiva quando da vistoria realizada pelo órgão, em 2015. Contudo, a morosidade do Incra em concluir os procedimentos administrativos culminou no ingresso indevido dos candidatos ao benefício da reforma agrária no imóvel. Naturalmente impacientes, pois as condições de acampamento à beira de estrada são precárias e desumanas, buscavam pressionar o órgão, ainda que em detrimento do direito de propriedade, ora lesado. Infelizmente, somente com a tragédia ocorrida há mais de um ano, voltou o Incra à pauta de negociação e, embora à época tenha o proprietário aceitado os valores propostos, não aconteceu o pagamento da terra”, explica o advogado.
Ailtamar ainda pondera que “o prejuízo do proprietário é imensurável, pois além de não receber pelos frutos do imóvel, que era produtivo há quatro anos, receberá de volta uma propriedade completamente degradada e desmatada, o que exigirá um oneroso projeto de recomposição, além dos custos judicialmente empenhados para a reintegração de posse”.
A respeito da responsabilidade do Incra, ele também enfatiza que “é evidente o descompromisso do instituto, não apenas para com o fazendeiro, mas, principalmente, para com as centenas de famílias que, vulneravelmente, aguardavam melhores providências do órgão, que tem, ironicamente, um dever existencial paradoxo ao que se tem visto”.
Questionado se a decisão de retomar a posse do imóvel é irreversível, Ailtamar concluiu que “não há expectativa, por isso a opção pela reintegração. Tudo que o proprietário podia fazer para contribuir com a celeridade do processo, foi feito. Não é muito dizer que toda esta situação, sobretudo a tragédia ocorrida, advém de uma desorganização da autarquia fundiária, sobretudo na Superintendência Regional em Marabá (PA), aliada à incompetência e irresponsabilidade de alguns servidores”.
Heranças do governo Temer
Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontam que o desmonte da Reforma Agrária no Brasil vem desde o governo de Michel Temer. Conforme a entidade, um dos meios adotados pelo governo do emedebista foi a diminuição significativa no orçamento para as políticas de Reforma Agrária, Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário que, em 2018, chegaram ao seu valor mínimo histórico.
Estudo levantado pela CPT aponta que o valor destinado à obtenção de terras em 2018 foi de R$ 83,7 milhões, sendo que em 2015 esse valor foi de R$ 800 milhões. No entanto, Ailtamar Carlos da Silva contesta este aporte com base em números da Lei Orçamentária Anual de 2018 e afirma que a destinação foi, na realidade, de R$ 34 milhões.
Ainda de acordo com a CPT, o orçamento para a Assistência Técnica nos assentamentos também sofreu grande corte. “Em 2015, o orçamento para essa área foi de R$ 355,4 milhões, enquanto que no ano de 2018, o valor destinado foi R$ 19,7 milhões. Esses são somente alguns exemplos do recuo histórico do orçamento para não solucionar os problemas do campo no país.”
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