Numa decisão polêmica e surpreendente, sob o silêncio do Ministério Público do Pará, que entrou mudo no julgamento e saiu calado, a Primeira Turma de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado (TJE) derrubou a decisão da Vara Agrária de Castanhal, que em abril de 2020 havia mandado bloquear 12 registros de imóveis em cartório que totalizam 35 mil hectares feitos em favor da empresa Agropalma. O MP apontou fraudes grotescas e acusou a empresa de grilagem de terras públicas.
O voto da relatora, desembargadora Ezilda Pastana Mutran, seguido à unanimidade pelas desembargadoras Célia Regina e Rosileide Cunha, corroborou a defesa feita pelo advogado Pedro Bentes e praticamente jogou por terra todas as outras decisões do próprio judiciário, que reconheceu as fraudes denunciadas pelo MP.
Aliás, há um fato que precede esse julgamento que, se não for devidamente explicado, poderá até torná-lo nulo e provocar a manifestação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Trata-se da ordem de entrada em pauta de um recurso para julgamento. Com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, em 2015, em 2016 surgiu a lei 13.256, que alterou a questão, introduzindo a palavra “preferencialmente!”.
Quando a inserção na pauta de julgamento é acompanhada dessa expressão, o magistrado é obrigado a justificar o motivo pelo qual ele está antecipando a ordem cronológica do julgamento para aquele processo fora da ordem. No caso da apelação da Agropalma, ela foi distribuída no dia 3 de março. É bom que se diga que essa ordem cronológica não parte da distribuição, mas sim da conclusão do processo para julgamento.
Ou seja, com o processo pronto, os autos são encaminhados para julgamento. Na verdade, a apelação só ficou pronta para julgamento, no dia 6 de junho. Isto é, em apenas 20 dias, a tal apelação foi conclusa e julgada e julgada pela desembargadora Ezilda Pastana Mutran. Com isto, a magistrada teria ferido toda a ordem cronológica do processo, num açodamento gritante e sem qualquer justificativa plausível.
A própria Agropalma não pediu celeridade no julgamento, nem justificou o julgamento antecipado, nada, assim como a desembargadora. Se o gabinete dela não tem processos acumulados, beleza. Parabéns ao gabinete por contribuir para a celeridade judicial. Se tem, mas a apelação da Agropalma atropelou a dinâmica da pauta, sem justificativa, haverá problemas.
Vale destacar que a ordem cronológica está regulamentada pelo próprio Regimento Interno do TJPA, enfatizando que a ordem cronológica ocorre a partir da conclusão do processo para julgamento, não pela sua distribuição. Contempla, também, que a “quebra” da ordem cronológica é punível a partir de Processo Administrativo Disciplinar (PAD).
Resumo disso: a celeridade precisar ser investigada, conjuntamente com a atitude das desembargadoras durante o julgamento, o que certamente, no mínimo, viola o princípio da moralidade e imparcialidade.
A defesa, acusações ao MP e o voto
Na abertura do julgamento, a relatora começou dizendo que a matéria “era um pouco diferente, não rotineira”. Ela leu o relatório e a palavra em seguida foi concedida ao advogado Pedro Bentes, dos escritório Silveira & Athias, defensor da Agropalma.
Ele começou destacando a “superlativa injustiça a que foi induzido o juiz de primeiro grau pelo Ministério Público de considerar grileira a Agropalma”, afirmando que a pecha de grileira “causa um terrível dano reputacional” à imagem da empresa. Segundo Bentes, a empresa “jamais participou de nenhum dos atos considerados fraudulentos que aconteceram muito tempo atrás, tanto é verdade que ela reconhece na sentença de primeiro grau a mais absoluta má fé, por ser tratadas na ação como se fosse grileira”.
Após essa chibata no MP, que sequer contra-argumentou a acusação do advogado, embora no julgamento estivesse presente uma procuradora de justiça, Bentes, como seria de se esperar, colocou a Agropalma no pedestal de vítima, quando documentos à farta demonstram justamente o contrário.
“Veja que coisa desarrazoada, até o Estado do Pará e o Senado Federal estão sendo acusados como praticantes de grilagem de terras públicas”, afirmou ele. Sobre a fraude que transformou pouco mais de 2.600 hectares em 35 mil hectares, Bentes foi taxativo ao declarar que a área ” fisicamente, materialmente, in loco, sempre teve 35 mil hectares”.
Ao partir dessa premissa, o advogado pergunta: “qual foi a fraude?”. E responde: “O Ministério Público fala direto no título 289, depois ele pula para o título 924.., e esquece o título do meio”. Bentes, porém, reconheceu que Jairo Mendes Sales, “realmente praticou uma fraude, pois só tinha 11 mil hectares, mas de maneira fraudulenta abarcou os 35 mil hectares que realmente existiam”.
Após a venda das terras para outras duas pessoas, “o Estado fez um acordo e foi reconhecido como detentor dos 35 mil hectares”. Na visão do advogado: ” a fraude foi desfeita por conta desse acordo transitado em julgado”. E mais: “foi aberta uma nova matrícula, a matricula 519, identificando os 35 mil hectares como de patrimônio público”.
Por conta do próprio acordo homologado, o Estado se obrigou a fazer licitação “fez a licitação, identificou os 35 mil hectares, fez as visitas in loco e ainda fez constar a obrigação de georreferenciamento”. Só que em 1989, pela linha do tempo, a Agropalma adquiriu “validamente os imóveis”. Então, conclui ele, “a decisão da desembargadora Luzia Nadja, que anulou o inventário das terras, em nenhum momento pôs em dúvida a matrícula 519”.
Bentes acusou novamente o MP de “nada provar ao contrário, praticando abuso da forma pela forma” ao arquir a ilegalidade da questão.
Ezilda viu fraudes saneadas por nova matrícula
No polêmico voto, a desembargadora Ezilda Mutram afirmou que a pretensão de nulidade dos registros “estaria prescrita”, pois já teriam decorridos mais de 40 anos, assistindo razão às recorrentes (Agropalma e Estado) sobre o decurso do tempo e a segurança jurídica dos fatos ocorridos de 1974, 1979 e 2011″. O voto de Mutran foi ao encontro do que pretendeu o advogado da Agropalma.
A respeito da grilagem e má fé da empresa, além da prática de nulidade insanável, ela disse que isto se confunde com o mérito da questão e que não iria se manifestar sobre a prescrição, afastando a preliminar.
No mérito, a desembargadora disse que a abertura da matrícula 519 pelo Iterpa “não pode ser atingida pelos vícios anteriores”, ou seja, as fraudes denunciadas pelo MP. “Importante acrescentar que devido ao acordo entre os particulares e o Estado do Pará, houve renúncia ao direito de recorrer, a decisão proferida na ação avocatória transitou livremente em julgado”.
Baseada nesse entendimento, Mutran ressalta que a nova matrícula, a 519, no cartório do Acará, “possui base constitucional e se origina na lei das terras, de 1850, artigo 3º, os quais descrevem que as terras devolutas são pertencentes ao Estado. Assim, reiterando entendimento esposado, sua origem não se encontra maculada pelo vício existente nos títulos anteriores”.
Ainda segundo a relatora, o procedimento de arrecadação das terras pode ser realizado na esfera administrativa de forma sumária, viabilizando o reingresso das terras públicas que estejam ilegalmente em poder de particulares. Este procedimento ocorre também para registrar a terra pública no meio imobiliário, possibilitando a sua regularização fundiária e posterior alienação.
Ezilda Mutran observou que a arrecadação das terras foi feita “dentro dos parâmetros legais, respeitando o interesse público, a conveniência e a oportunidade da administração pública”. E mais: “pela descrição dos fatos, já se aperfeiçoou o fato de que com a assinatura da escritura pública inexiste discussão acerca da origem pública da terra, sendo preenchido este requisito com a anuência de todas as partes”. Também argumenta que técnicos do Iterpa realizaram vistoria nas terras, com a elaboração de um laudo para cada um dos 12 lotes do imóvel, em um total de 75 folhas.
Por fim, ela mencionou no voto a importância da Agropalma para a economia local, “gerando mais de 6 mil empregos”. Resumiu que há provas da “construção de vila, escolas, creches, observando-se as áreas ambientalmente protegidas, com manutenção da flora e mais de 6 mil espécies de fauna nativa, das quais mais de 40 são ameaçadas de extinção”.
Essas observações da desembargadora eram desnecessárias e só interessavam à Agropalma, mas ela fez questão de mencioná-las, talvez para reforçar a “função social da propriedade”. Enfim, ela desconsiderou o vício de origem na fraude e entendeu que a matrícula 519 saneou o erro.
Questão altamente polêmica que cabe agora ao MP contestar, se quiser. O silêncio, a esta altura do campeonato, seria desmoralizante para o próprio MP. A bola está com o procurador de justiça Mário Falângola.
O Ver-o-Fato apurou que a promotoria agrária considerou “absurda” a decisão da Primeira Turma de Direito Público e que o recurso ao TJ é uma questão de honra.
Veja, abaixo, as imagens completas do julgamento.