A ação penal que agora começa a tramitar na Justiça Federal, envolvendo a Agropalma e as monumentais fraudes que ocorreram no registro de 106 mil hectares, precisa ser entendida em um contexto mais amplo, que remonta a décadas de maquinações perversas e ilegalidades, inclusive usando o Poder Judiciário, onde o processo chegou a ficar desaparecido dos armários do fórum, em Belém, nos anos 90, mas depois foi localizado.
Como há muita coisa a ser abordada sobre o conteúdo dessa ação penal, após a denúncia feita pela procuradora da República, Meliza Alves Pessoa e recebida pelo juiz da 4ª Vara Federal de Belém, Antônio Carlos Campelo, é preciso relatar que, em 2015 – bem antes disso o Ver-o-Fato já havia exposto em reportagens investigativas as vísceras podres desse caso – o promotor de Justiça, Daniel Henrique Queiroz de Azevedo denunciou falsidade ideológica e falsidade documental de cinco envolvidos nas maracutaias.
Naquela ocasião, o então presidente da Agropalma, José Hilário Freitas e o diretor da empresa, Antônio Pereira da Silva – falecido no começo deste ano de 2021, vitimado pela Covid-19 – acabaram excluídos do processo por decisão das Câmaras Reunidas do Tribunal de Justiça do Pará, por meio de um polêmico habeas-corpus.
A denúncia de Daniel Azevedo aponta como as fraudes foram praticadas, inclusive por dois cartorários, um deles como interventor judicial nomeado pelo Tribunal de Justiça. Além do presidente e do diretor da Agropalma foram denunciados pelo MP paraense, os cartorários Maria do Socorro Puga de Oliveira e Francisco Valdete Rosa do Carmo, além do comerciante Saulo Sales Figueira.
O juiz do Acará, Wilson Corrêa, que iria julgar o processo, jurou suspeição e saiu do caso, que chegou a ser deslocado para outra comarca, a de Concórdia do Pará, para ser julgado por outro juiz, Adelino Arraes Gomes da Silva. Esse processo é robusto e tem 5.295 páginas divididas em 18 volumes.
Decisão polêmica
O advogado Roberto Lauria, defensor do presidente da Agropalma, alegou em pedido de habeas-corpus para trancamento da ação penal, ter havido constrangimento ilegal, por ausência de justa causa para o prosseguimento do processo, “por ser inepta a exordial acusatória apresentada pelo Ministério Público. Além disso, a suposta conduta criminosa de José Hilário Freitas “não foi devidamente individualizada pelo órgão ministerial”, dizia o advogado.
Por duas vezes o pedido de Roberto Lauria foi rejeitado, um deles pelo desembargador Rômulo Nunes. O desembargador justificou, para negar o trancamento da ação penal, que “não havia motivos plausíveis que justifiquem a interrupção do feito, por conta de uma suposta inépcia da exordial acusatória, que, aliás, será melhor examinada quando do julgamento do mérito da presente demanda, juntamente com o parecer ministerial para melhor decidir o meritum cause”.
Na terceira tentativa, Lauria obteve sucesso, desta vez nas Câmaras Criminais Reunidas, pelo voto do relator, desembargador Raimundo Holanda Reis, seguido pela maioria. O que chamou a atenção nesse habeas-corpus para trancar o processo é que Holanda Reis estendeu o benefício ao diretor da Agropalma, Antônio Pereira da Silva, apenas porque Lauria, em sustentação oral, havia pedido. Ou seja, o desembargador excluiu um e estendeu a exclusão a outro que sequer figurava no pedido por escrito.
Dedo na ferida
Segundo a denúncia, em meados de 2005, diversas glebas rurais que totalizam aproximadamente 7 mil hectares, localizadas no Acará, à margem esquerda do igarapé Urucuré e na lateral direita do igarapé Pracateua, direita do Tucumundaré, dentre outras confrontações naturais, “foram adquiridas de maneira ilegal pelas empresas do Grupo Agropalma S/A, cujo títulos de propriedade foram emitidos, fraudulentamente, pelo Cartório de Registro do Acará ou foram falsificados”.
Para Daniel Azevedo, o grande idealizador e executor dessas falsidades de documentos de registros públicos foi Antônio Pereira da Silva, o qual era gerente geral da Agropalma, sendo que todos os seus atos ilícitos eram de conhecimento e tinham pleno apoio de José Hilário Freitas, pois na qualidade de presidente também coordenava, porém, de forma indireta, as condutas dos demais envolvidos.
“Assim, Antonio Pereira, com autorização e conhecimento de José Hilário Freitas, iniciou o esquema criminoso de grilagem, contratando, em meados de 2005, Saulo Sales Figueira, o qual era corretor de imóveis nessa região, para que localizasse glebas rurais no município do Acará, que pudessem ser tomadas, por não terem donos presentes e nas quais a documentação fosse bem antiga. Ocorre que para a aparente “legalização” da enorme área rural localizada por Saulo Sales Figueira foi necessário que ele intermediasse a inclusão da denunciada Maria do Socorro Puga de Oliveira no esquema criminoso.
Ela era tabeliã do Cartório de Registro de Imóveis do Acará, o que lhe permitiu registrar falsamente a compra de glebas de “terceiros” pela Agropalma, por meio de certidões ideologicamente falsas e até por meio de certidões assinadas por quem não tinha atribuição para tanto ou mesmo por cartório inexistente”, diz o promotor na denúncia.
Certidões falsas
Mais adiante, ele informa que esses “terceiros” tiveram seus nomes inseridos nos registros falsificados – na qualidade de proprietários das terras supostamente adquiridas pela empresa Agropalma S/A – dentre eles José Wanderley Marques Melo (dono da empresa Dismelo, de Castanhal), Antonio Tadeu da Silva, João Arimatéia Rodrigues e Álvaro Alves Ferreira, cujas condutas ainda estão sendo melhor investigadas, notadamente quanto ao conhecimento que tinham de estarem se envolvendo em fraudes de documentos públicos.
Nesse contexto, foram emitidas certidões falsas pela cartorária Maria do Socorro Oliveira, tais como aquelas acostadas às folhas 623 e 625 dos autos, nas quais há carimbos de cartório que nem mesmo existia (Cartório Oliveira), bem como uma delas, com data de 21 de março de 2006, quando a cartorária já havia sido afastada de suas funções de oficial de registro, o que ocorreu em outubro de 2005.
Documentos falsos e cartório “fantasma”
Aliado a isso – prossegue o promotor Daniel Azevedo -, a cartorária Maria do Socorro de Oliveira ainda se valeu do nome de seu filho, Antonio Pinto Lobato Filho, que era quase idêntico ao do antigo oficial de registro já falecido à época (Antonio Pinto Lobato), de modo a permitir a criação de outros documentos falsos, tais como aqueles acostados às folhas 624 e 626 dos autos, em que consta uma assinatura que não é de Antônio Pinto Lobato Filho, até porque ele não era oficial de registro autorizado e nos quais também consta o selo do Cartório Oliveira, que jamais existiu, conforme já dito.
Note-se, contudo, que o esquema não parou por aí, já que, ainda no ano de 2006, José Maria Tabaranã da Costa – que alega ser o legítimo proprietário das glebas “griladas” – começou a reivindicar seus direitos junto à Agropalma S/A, pois ficou sabendo que nas suas alegadas terras já haviam sido, inclusive, realizadas plantações de dendê, pertencentes ao referido grupo empresarial.
A participação do cartorário no esquema
Em razão das cobranças e pressões feitas por José Maria Tabaranã da Costa, foi necessária a inclusão no esquema criminoso do denunciado Francisco Valdete Rosa do Carmo, pois ele passou a ser o cartorário oficial do registro de imóveis do Acará, desde o afastamento de sua antecessora, Maria do Socorro de Oliveira. Na execução dos crimes, a função de Francisco Valdete do Carmo foi o não fornecimento de quais registros do cartorário do Acará que fossem solicitados por aqueles que – além da Agropalma – alegavam ser os legítimos proprietários das terras.
Em 2011, Francisco Valdete do Carmo procedeu uma série de restaurações de documentos de registro – alguns deles com base em contratos de compra e venda, lavradas no Cartório Diniz, do 2º Ofício de Notas, localizado em Belém – relativas a propriedade das glebas rurais adquiridas pela Agropalma.
Ressalte-se que a justificativa de ser necessária a realização das referidas restaurações foi o suposto extravio de parte da documentação que deveria estar arquivada no Cartório do Acará, a qual teria sumido na época do afastamento da antiga tabeliã, Maria do Socorro de Oliveira. Na verdade, essas restaurações foram feitas pelo denunciado Francisco Valdete do Carmo para dar ares de legalidade – pela chancela do Cartório do Acará – em relação a documentos claramente falsos e outros deles decorrentes, conforme já mencionado anteriormente, apresentados pela Agropalma, por meio de Antônio Manoel Câmara Leal, que foi contratado por Antonio Pereira da Silva, diretor geral da empresa e José Hilário Freitas, para acompanhar os trâmites cartorários da restauração da papelada.
Note-se, observa ainda o promotor na denúncia, que o cartorário Francisco Valdete do Carmo foi devidamente remunerado para participar do esquema criminoso, pois recebeu na Agropalma dois cheques nominais, do banco Santander, um no valor de R$ 170 mil, e outro, dez dias depois, de R$ 70 mil, o que foi presenciado por Antônio Manoel Câmara Leal, que inclusive estranhou tal pagamento, pois as custas cartorárias pelas restaurações, no ano de 2011, não ultrapassavam 5% do total de R$ 240 mil recebidos pelo cartorário.
Promotor: “não houve boa fé“
Não é demais por em relevo que Antônio Pereira da Silva e José Hilário Freitas “foram diversas vezes procurar Valdete Francisco do Carmo, inclusive na casa dele, localizada em Concórdia do Pará, no período em que estavam sendo realizadas as restaurações de registros baseadas em documentos fraudulentos, o que demonstrava a íntima e anormal relação que possuíam”, salienta Daniel Azevedo.
Por fim, o promotor destaca que Antônio Pereira da Silva e José Hilário Freitas foram informados por José Maria Tabaranã da Costa Júnior, por diversas vezes, sobre a falsidade dos documentos de aquisição das glebas rurais, “de modo que não agiram de boa fé na situação, mas ao contrário, procuraram encobrir o esquema fraudulento iniciado em 2005, através dos atos executados por Saulo Sales Figueira e Maria do Socorro de Oliveira, bem como tentaram dar ares de legalidade à fraude documental por meio das já referidas restaurações de registros ilegalmente realizadas pelo tabelião Francisco Valdete do Carmo”.
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