Hélio Castro é conhecido, hoje, apenas pelo pequeno número de jovens universitários que se dedica aos estudos do Cinema no Pará.
E o que é pior: conhecido entre eles, em geral, como uma espécie de canastrão escolhido pelo diretor Líbero Luxardo para desempenhar o mais importante papel masculino em “Um Dia Qualquer”.
Este filme, o primeiro de longa metragem produzido em nosso Estado, foi rodado no início dos anos de 1960.
A escolha, nos nossos dias, parece desconcertante dentro do ambiente acadêmico porque, naquele período,a Escola de Teatro de Belém formava bons atores.
E era incluída entre os três melhores centros de ensino do país, na sua área.
O outro, o pintor e músico Eduardo Falesi, quase ninguém sabe quem foi.
Talvez porque a lembrança dele ainda seja capaz de incomodar aquela parte da elite do Pará, cujo poder foi sempre exercido com grande carga de hipocrisia.
Por isto, eternamente incapaz de aceitar publicamente um comportamento individual que não se enquadre nos limites estreitos da moralidade, da sexualidade e da sanidade convencionais.
Falesi era o louco, o imoral, o herege que pintava anjos fazendo sexo.
O desconhecimento e os preconceitos que recobriram as atuações de Hélio Castro e Eduardo Falesi os mantiveram à margem da produção cultural do Pará.
No entanto, jovens pesquisadores paraense do CNPq mostraram que a barreira de silêncio que os cercava podia facilmente ser transpostas.
Em 2004, Hélio ainda estava vivo, quando os pesquisadores reuniram dados sobre ele que os levaram a vê-lo de modo diferente.
Ele havia viajado pelo mundo e dominava várias línguas estrangeiras.
Sua fama de “Bom Vivant dos Anos Dourados do Pará”, criada pela constância com que aparecia nas colunas sociais, contrastava com suas quatro décadas de trabalho como despachante no movimentado porto de Belém.
Tal notoriedade de homem mundano se mostrou falsa, sobretudo, no momento mais dramático do Pará, naquele período.
Em 1964, quando os militares instalaram no Brasil a ditadura que iria impor ao país duas décadas de perseguições a seus artistas e intelectuais.
Naquele momento, Hélio poderia ter se acomodado e usufruído egoisticamente da proximidade que tinha com o Jarbas Passarinho, líder dos golpistas no Pará.
O coronel estava casado com uma parenta dele.
Seu comportamento, porém, foi completamente diferente disto.
Quando soube que o poeta Ruy Barata havia saído da prisão para onde fora levado pelos militares, Hélio procurou o poeta e colocou à disposição dele todo o dinheiro que tinha em sua conta bancária.
O gesto nobre jamais foi revelado por ele.
Só se tornou conhecido quando o escritor Alfredo Oliveira, biógrafo de Ruy, o relatou aos pesquisadores do CNPq.
Naquela ocasião, Alfredo acrescentou:
– Ruy não aceitou a generosidade de Hélio, mas nunca se esqueceu dela.
Quanto à vida e à produção artística de Eduardo Falesi sempre permaneceram como um tema que desafia pesquisadores independentes.
Sobre Falesi o que existe são somente registros esparsos da originalidade de sua obra de pintor e de sua carreira de pianista.
Tudo, misturados a lembranças inevitavelmente imprecisas de sua atormentada biografia guardadas por alguns poucos paraenses de mais idade que conviveram com ele.
Uma surpresa, contudo, estava reservada para os pesquisadores do CNPq, na casa de Hélio Castro.
Ali, eles encontraram uma foto na qual Hélio aparecia junto com Falesi, num evento artístico ocorrido no Teatro da Paz.
A foto imediatamente despertou o interesse dos pesquisadores do CNPq.
E provocou este diálogo com Hélio, registrado por eles:
P: Hélio, onde você aprendeu a tocar piano?
R: Fazia parte da educação de outrora tocar piano. Inclusive da educação dos homens.
P: Você frequentemente se apresentava em público como pianista?
R: Desta vez, eu toquei com o Eduardo Falesi. O Teatro da Paz já tinha um piano de cauda, mas o compositor Adelermo Matos conseguiu no Exterior um segundo piano para aquela casa de espetáculo. Foi montado um concerto com os dois pianos para a apresentação do instrumento que tinha acabado de chegar. Então, eu toquei num piano, e, no outro, tocou o Falesi, que era um grande pianista. O teatro estava cheio de gente. Tocamos “Jesus, Alegria dos Homens”, de Bach. A família do Eduardo é muito conhecida e muito querida, aqui na nossa cidade.
P: Então, você tinha formação musical suficiente para tocar uma peça erudita?
R: Eu estudei no Conservatório Carlos Gomes. Nós dois tocamos bem aquela peça. Fomos muito aplaudidos. Foi muito bom termos podido trabalhar pela cultura em nosso Estado. Fizemos muitos trabalhos para desenvolver o gosto pela cultura nos jovens aqui de Belém.
P: Falesi, além de pianista, era considerado excelente pintor. Teria produzido uma série de quadros escandalosos com o título de “Anjos Copulando”. Você se lembra destes quadros?
R: Lembro. Nós éramos muito amigos. O irmão dele, o Domênico, mora em Ananindeua. O Domênico fechou a antiga casa comercial dele e abriu outra, na Rua Benjamim Constant. O nome desta casa era “Odalisca”.
P: Falesi morava perto do Bar do Parque, na Praça da República?
R: Morava na Rua 13 de Maio.
*Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista
Translation (tradução)
These two artists faced prejudice in Pará
Hélio Castro is known today only by a small number of university students dedicated to film studies in Pará. Worse still, among them, he is generally regarded as a sort of “ham actor” chosen by director Líbero Luxardo to play the most important male role in Um Dia Qualquer.
This film, the first feature-length production in our state, was shot in the early 1960s. The choice, in today’s academic circles, seems perplexing because, at that time, the Belém Theater School was training excellent actors and was considered one of the top three theater training centers in the country.
The other figure, painter and musician Eduardo Falesi, is virtually unknown.
Perhaps because his memory still unsettles a segment of Pará’s elite, whose power has always been exercised with a heavy dose of hypocrisy, forever incapable of publicly accepting individual behavior that falls outside the narrow confines of conventional morality, sexuality, and sanity. Falesi was labeled as the madman, the immoral, the heretic who painted angels engaged in sexual acts.
The ignorance and prejudices that overshadowed the contributions of Hélio Castro and Eduardo Falesi kept them on the margins of Pará’s cultural production. However, young researchers from Pará, supported by CNPq, showed that the barrier of silence surrounding them could easily be overcome.
In 2004, when Hélio was still alive, researchers gathered data about him that led them to see him differently. He had traveled the world and was fluent in several foreign languages.
His reputation as a “bon vivant of Pará’s Golden Years,” fueled by his frequent appearances in society columns, contrasted with his four decades of work as a customs agent at Belém’s bustling port. This image of a worldly man proved false, especially during Pará’s most dramatic moment of that period.
In 1964, when the military established a dictatorship in Brazil that would impose two decades of persecution on the country’s artists and intellectuals, Hélio could have taken advantage of his proximity to Jarbas Passarinho, the leader of the coup in Pará, who was married to a relative of his. Instead, his actions were entirely different.
Upon learning that poet Ruy Barata had been released from the prison where he was held by the military, Hélio sought him out and offered all the money in his bank account. This noble gesture was never revealed by Hélio himself. It only came to light when writer Alfredo Oliveira, Ruy’s biographer, shared it with CNPq researchers. On that occasion, Alfredo added: “Ruy did not accept Hélio’s generosity, but he never forgot it.”
As for Eduardo Falesi’s life and artistic output, they remain a challenging subject for independent researchers. What exists about Falesi are only scattered records of the originality of his work as a painter and his career as a pianist, mixed with inevitably imprecise memories of his troubled biography, preserved by a few older residents of Pará who knew him.
A surprise, however, awaited the CNPq researchers at Hélio Castro’s home. There, they found a photograph showing Hélio alongside Falesi at an artistic event held at the Teatro da Paz. The photo immediately piqued the researchers’ interest and sparked the following dialogue with Hélio, recorded by them:
Researcher: Hélio, where did you learn to play the piano?
Hélio: Playing the piano was part of education back then, even for men.
Researcher: Did you often perform publicly as a pianist?
Hélio: On this occasion, I played with Eduardo Falesi. The Teatro da Paz already had a grand piano, but composer Adelermo Matos acquired a second one from abroad for that venue. A concert with two pianos was organized to showcase the newly arrived instrument. I played one piano, and Falesi, a great pianist, played the other. We performed Bach’s Jesus, Joy of Man’s Desiring. The theater was packed, and we were warmly applauded. The Falesi family is well-known and beloved in our city.
Researcher: So, you had enough musical training to perform a classical piece?
Hélio: I studied at the Carlos Gomes Conservatory. We both played the piece well and were heavily applauded. It was wonderful to contribute to our state’s culture. We did a lot to foster an appreciation for culture among Belém’s youth.
Researcher: Falesi, besides being a pianist, was considered an excellent painter. He is said to have created a scandalous series of paintings titled “Copulating Angels.” Do you remember those paintings?
Hélio: I do. We were close friends. His brother, Domênico, lives in Ananindeua. Domênico closed his old commercial business and opened another on Benjamin Constant Street, called “Odalisca.”
Researcher: Did Falesi live near Bar do Parque, at Praça da República?
Hélio: He lived on 13 de Maio Street.
Oswaldo Coimbra is a writer and journalist.
(Illustration: Falesi, from behind, and Hélio, in a light suit, at the Teatro da Paz concert)