Com o fechamento do comércio durante a quarentena, a nossa forma de comprar e de vender se tornou quase 100% digital. Basicamente, só os hiper e supermercados, além do pequeno varejo de alimentos, mantiveram as portas abertas num primeiro momento. Mas, mesmo nestes casos, muita gente preferiu fazer as compras online, quando possível.
Agora, com a reabertura do varejo, as lojas de rua, que vinham perdendo espaço nos últimos anos, ganharam novo impulso. Por ora, um contingente considerável de consumidores ainda procura evitar os shoppings, que são espaços fechados e mais propensos a atrair aglomerações.
Como já era esperado, o e-commerce caiu um pouco com a volta do varejo a uma relativa normalidade, mas ainda continua bem acima do nível pré-pandemia. A tendência é de o comércio eletrônico se consolidar no novo patamar e voltar a crescer gradualmente logo mais.
Com o delivery está ocorrendo um fenômeno semelhante. Apesar da ligeira queda na demanda após a reabertura de bares e restaurantes, o delivery continua a ser a alternativa preferida por muitos consumidores.
Expansão do comércio eletrônico
Durante o período de isolamento social, o comércio eletrônico, que já vinha em alta há anos, cresceu em progressão geométrica no País. De repente, todo mundo, inclusive os mais idosos, que tinham maior resistência em aderir ao sistema, passou a comprar quase tudo online.
Agora, com a flexibilização da quarentena e a reabertura do comércio, as vendas pela internet registraram um ligeiro recuo, mas continuam bem acima do nível de antes da pandemia. A tendência, com a crescente digitalização da população, é que o e-commerce se consolide em um novo patamar e volte a crescer com consistência em breve.
Segundo dados da Abcomm (Associação Brasileira de Comércio Eletrônico), o e-commerce teve um crescimento robusto durante a crise, tanto em faturamento como em número de transações. De janeiro a agosto deste ano, o número de pedidos aumentou 65,7%, passando de 63,4 milhões para 105,1 milhões, enquanto o faturamento cresceu 56,8%, de R$ 26,7 bilhões para R$ 41,9 bilhões.
Em setembro, de acordo com um levantamento feito pela Corebiz, empresa de marketing digital para o varejo, houve uma pequena queda nas transações digitais em relação a agosto. O resultado, porém, ainda ficou bem acima do registrado no mesmo mês do ano passado. No setor de casa e construção, por exemplo, a queda foi de 0,5% em relação a agosto, mas, em comparação com setembro do ano passado, o crescimento ainda alcança 97%. Na área de moda, a redução também foi de 0,5% em relação ao mês anterior, mas o resultado em relação a setembro de 2019 ainda chega a 77%.
“Com a pandemia e tudo o que a gente conseguiu avançar em comércio eletrônico nesse período, o Brasil tem hoje entre 38 milhões e 42 milhões de consumidores online, dependendo da fonte, o que é quase o dobro do que a gente tinha antes”, diz Fernando Gambôa, sócio no Brasil da KPMG, uma empresa internacional de consultoria, e responsável pela área de consumo e varejo. “Mesmo assim, isso representa apenas 20% da população brasileira. O espaço para crescer, portanto, é muito grande.”
Na visão de Gambôa, não é por acaso que, durante a crise, o Mercado Livre se tornou a empresa de capital aberto com o maior valor de mercado da América Latina, de US$ 64,7 bilhões (R$ 368,7 bilhões). “Ninguém esperava isso, porque os ativos de uma Petrobrás e de uma Vale são muito maiores que os do Mercado Livre.”
“Quando o pequeno varejo vai ao e-commerce, abre um tremendo leque de oportunidades” – Fernando Gambôa, sócio da KPMG no Brasil e responsáve pela área de consumo e varejo.
Na quarentena, os pequenos negócios, que estavam ausentes do e-commerce, entraram no jogo, associando-se a um market place, como o da Lojas Americanas, o da Magalu e o da Amazon. De acordo com a Abcomm, cerca de 150 mil novas lojas virtuais surgiram entre março e julho, uma média de 30 mil por mês ou quase uma nova loja por minuto, enquanto antes da pandemia a média era de 10 mil lojas por mês. Os pequenos varejistas fincaram também sua bandeira nas redes sociais, para ampliar as vendas online e interagir com a clientela.
Diante do sucesso que alcançaram, segundo Gambôa, muitas empresas de menor porte passaram a questionar se faz sentido manter as lojas físicas, cujos aluguéis custam caro, em vez de ficar só no mundo virtual, instaladas em locais menos valorizados e alcançando um número muito maior de clientes. “Quando o pequeno varejista vai ao e-commerce, abre um tremendo leque de oportunidades”, afirma. “Cria o varejo sem fronteiras.”
Para o economista Adriano Pitoli, ex-diretor de análise setorial e regional da Tendências Consultoria e ex-chefe do núcleo da Secretaria de Indústria e Comércio do Ministério da Economia em São Paulo, a pandemia trouxe também grandes desafios para as grandes redes de varejo, que já estavam estabelecidas no e-commerce.
Embora sejam festejadas pelos investidores e tenham aumentado muito o faturamento no e-commerce durante a pandemia, as grandes redes ainda não comprovaram que seus modelos de negócios digitais são lucrativos. “É duro ganhar dinheiro nesse mercado. Mesmo para a Amazon, é difícil gerar lucratividade”, diz. “Até pouco tempo atrás, o que estava dando lucro para a Amazon era o serviço de nuvem e não o comércio eletrônico.”
Segundo Pitoli, a forte concorrência entre as redes na venda de bens industrializados de alto valor agregado, como as TVs, leva à redução das margens de lucro. “Se um site está oferecendo uma TV da marca ‘X’ por R$ 5 mil e no site vizinho o mesmo aparelho está por R$ 4.999, você clica no de R$ 4.999.”
Além disso, na pandemia, com as lojas fechadas, os próprios fabricantes passaram a oferecer seus produtos diretamente ao consumidor, ampliando ainda mais a concorrência. Como se pode observar, ainda há muito a acontecer nesta área e a disputa pelo mercado só tende a crescer. Melhor para o consumidor, que incorporou de vez o e-commerce em seu dia a dia.
Revitalização das lojas de rua
Um dos principais efeitos da pandemia no varejo foi a revitalização das lojas de rua, que vinham perdendo espaço há anos no País, e a redução na atratividade dos shoppings. Passados quase cinco meses da reabertura, os shoppings ainda não conseguiram retomar o lugar que ocupavam antes da crise e é difícil dizer hoje se algum dia conseguirão fazê-lo.
Embora muita gente esteja agindo como se pandemia tivesse acabado, uma parcela considerável da população continua preocupada com o contágio, procurando manter um certo distanciamento social. Por isso, quando precisa sair de casa para ir às compras, está dando preferência ao varejo de rua, que pode atender os clientes na calçada, se for o caso, em lugar dos shoppings, que são locais fechados e tendem a ter maior aglomeração de consumidores.
Muitos varejistas que haviam deixado de lado as lojas de rua também voltaram a enxergá-las como uma alternativa para rentabilizar os seus negócios, estimulados pelo crescimento do comércio eletrônico e pela queda substancial do movimento dos shoppings em relação ao pré-pandemia.
Com a redução do faturamento das lojas de shopping, a viabilidade econômica de manter um ponto de altíssimo custo ficou em xeque. “Todo mundo entendeu que, migrando para loja de rua, barateia o seu custo e pode criar um estoque segregado para as vendas online, para continuar vivendo do e-commerce”, afirma Fernando Gambôa, sócio no Brasil da KPMG, uma empresa internacional de consultoria, e responsável pela área de consumo e varejo. “Se você usar uma loja de shopping para fazer e-commerce, cada produto que enviar para um cliente vai ter de pagar uma porcentagem para o shopping, coisa que no varejo de rua não acontece.”
Segundo Gambôa, a tendência é haver um aumento na devolução de espaços nos shoppings e uma redução no interesse das marcas por buscar novos empreendimentos do gênero para se instalar. Isso deverá levar a uma redução dos lançamentos de shoppings no País nos próximos meses e anos. “Para lançar um novo shopping agora ficou complicado”, diz.
No exterior, já antes da pandemia, de acordo com ele, os shoppings estavam se reinventando e se transformando em grandes centros de entretenimento, “com umas lojas do lado”. A questão é que, com o coronavírus, esse modelo, que favorece aglomerações ainda maiores do que os shoppings tradicionais, também ficou na berlinda. De um jeito ou de outro, os próximos anos prometem aprofundar as mudanças ocorridas no varejo durante a crise.
Delivery no cardápio
O delivery já era uma realidade no País muito antes da pandemia. Mas, na quarentena, os motoqueiros que prestam serviço de entrega em domicílio tomaram conta das ruas como nunca, impulsionados por aplicativos como iFood, Rappi e Uber Eats. Até bebidas produzidas em bares da moda passaram a ser entregues em casa, ampliando o cardápio à disposição da clientela.
Em São Paulo, restaurantes estrelados, como o Fasano, e chefs famosos, como Erick Jacquin, do Presidént, e Carla Pernambuco, do Carlota, que nunca haviam aderido ao sistema, entraram na dança, para manter o negócio em funcionamento durante a fase mais aguda de isolamento social.
Com a adesão de nomes de destaque da cena gastronômica ao delivery, as velhas quentinhas de alumínio ou isopor cederam espaço a embalagens mais sofisticadas e mais criativas. Além de manter a textura dos ingredientes e o visual dos pratos, elas ainda deram um toque de classe ao serviço.
Mesmo com a reabertura de bares e restaurantes para atendimento presencial, o movimento ainda está bem abaixo do que no pré-pandemia. Muita gente ainda não se sente segura em fazer as refeições num ambiente fechado, com as mesas frequentemente distribuídas em desacordo com o protocolo e com todos os clientes sem máscara. A tendência, portanto, é o delivery continuar a turbinar o faturamento, que continua bem mais baixo do que antes da crise.
Em outubro, segundo a Cielo, uma das principais empresas de administração de cartões de crédito, a receita de bares e restaurantes ainda foi 26,8% menor do que antes da covid-19, mesmo com o delivery, e a previsão é de que ainda levará um bom tempo para retornar ao patamar anterior.
De acordo o Instituto Foodservice Brasil (IFB), uma organização que congrega as principais empresas do setor de alimentos – fabricantes, prestadores de serviço e operadores –, os gastos com refeições preparadas fora de casa deverão ficar em R$ 137 bilhões em 2020 e em 187,2 bilhões em 2021. Se isso se confirmar, a queda no faturamento deverá alcançar 36,2% em 2020 e 13% no ano que vem em relação aos R$ 215 bilhões registrados em 2019. “Muitas empresas continuarão a manter os funcionários em home office e aquele movimento que havia perto dos escritórios pode nunca mais voltar a ser o mesmo”, diz Ingrid Devisate, diretora executiva do IFB.
A ideia de estar no mesmo ambiente com várias pessoas sem máscara ainda assusta muita gente
Não por acaso o Burger King abriu no Brasil a primeira ghost kitchen (“cozinha fantasma”) da rede no mundo, para atender o aumento na demanda pelo delivery e otimizar a entrega presencial nos restaurantes do grupo. O iFood, por sua vez, recebeu aval da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) para começar a operar com drones.
A ideia é usar os equipamentos para fazer a primeira parte do trajeto, até um posto intermediário, onde os pedidos serão distribuídos os entregadores, para ser levados aos endereços dos clientes. São apostas que reforçam a percepção de que o delivery deverá continuar a ter uma presença relevante na vida de todos nós mesmo depois que a pandemia se for.
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