Belém se despediu nesta segunda-feira, 30 de junho, de uma de suas figuras mais marcantes no cenário artístico e cultural: Cláudio de Sousa Barradas, professor, ator, encenador, dramaturgo, crítico e sacerdote. Ele faleceu aos 95 anos, na capital paraense, deixando um legado profundo nas artes cênicas da Amazônia.
Cláudio Barradas foi um mestre. Com sua visão generosa e ousada do fazer teatral, formou gerações de artistas na Escola de Teatro e Dança do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará (UFPA), onde atuou por décadas. Sua trajetória foi reconhecida oficialmente em dezembro de 2021, quando recebeu o título de Professor Emérito da UFPA — uma homenagem mais do que merecida para quem ajudou a construir e consolidar o ensino das artes cênicas na região Norte.
Em nota oficial, a UFPA lamentou profundamente a perda do artista e destacou que Barradas é “expoente da cena cultural amazônica e referência incontornável nas artes cênicas paraenses”. Ele foi, sem dúvida, uma das pedras angulares do teatro feito na Amazônia brasileira, levando aos palcos não apenas obras consagradas, mas, sobretudo, autores paraenses como Benedicto Monteiro, Levi Hall de Moura e Nazareno Tourinho, a quem ofereceu espaço, voz e interpretação cênica rigorosa e sensível.
Barradas dirigiu espetáculos marcantes que ajudaram a contar a história da identidade amazônica com beleza e consistência estética. Mas sua obra foi além do palco: ela se espalhou pelos gestos de quem ensinou, pelos textos que ajudou a montar, pelas salas de aula que ocupou com sua inteligência e sua crença na arte como caminho de transformação social.
Um artista múltiplo
Em 2004, o jornalista e escritor Oswaldo Coimbra realizou uma série de entrevistas com Cláudio Barradas, somando dez horas de conversas profundas que resultaram no livro “Cláudio Barradas – O lado invisível da cultura amazônica”. Nessa entrevista, o artista revela passagens marcantes de sua infância, da vida artística em Belém no século XX, do ciclo da borracha ao teatro de revista, da efervescência cultural até os hiatos impostos por mudanças econômicas e políticas.
“Fora da Igreja, fui um artista multimídia quando essa palavra ainda nem existia”, afirmou Barradas. De fato, sua atuação abarcou teatro, cinema, rádio, TV, jornalismo e literatura. E, como se não bastasse, conciliava tudo isso com a missão sacerdotal, sempre ancorado por uma fé discreta, mas profunda, na capacidade da arte de redimir, provocar e ensinar.
Em suas memórias, narradas a Coimbra, Barradas fala do “barracão de zinco” onde nasceu, na Avenida Alcindo Cacela; da governanta Dona Flor, pianista que o guiava pela Belém dos cafés-concerto nos anos 1930; da sua paixão pela ópera e dos teatros de revista paraenses, tão ousados quanto os do Rio de Janeiro.
Recordou o declínio cultural da cidade com o fim do Ciclo da Borracha, o impacto do golpe de 1964 e as muitas lacunas na história cultural da Amazônia. Suas memórias revelam um homem sensível, atento, apaixonado por sua terra e orgulhoso de sua origem modesta.
A entrevista: Cláudio Barradas por ele mesmo
A seguir transcrevemos uma parte das entrevistas na qual ele falou de sua infância, sem se prender unicamente a esta fase da sua vida.
Vamos reconstituir a sua história, desde o início. Onde e quando você nasceu?
Eu nasci no dia 4 de janeiro de 1930, numa casa da Avenida Alcindo Cacela, um chalé com telhado de zinco, que o pessoal que vivia nele chamava de barracão por causa da letra de uma música que falava em “barracão de zinco”. No lugar onde ficava o “barracão de zinco”, está instalada, hoje, a Nilce Cabeleleira.
Quem era “o pessoal” que vivia no “barracão de zinco”?
Aquele chalé era a casa da Dona Flor, como era conhecida a excelente pianista Margarida Costa de Carvalho. Minha mãe tinha sido a governanta dela. Era minha mãe quem dirigia tudo no chalé, enquanto Dona Flor dava aulas de piano, nas casas dos alunos dela. E eu era a sombra da Dona Flor. Ela me levava a todos os lugares onde fosse dar aula de piano.
Em que lugares ela dava aulas?
Naquela fase da minha infância, no final dos anos de 1930, havia na cidade muitos cafés-concerto. Na saída de Belém, havia o Souza Bar que era famosíssimo. Ali findava a linha do bonde. Quase defronte, ficava o Asilo Dom Macedo Costa, que agora está em reforma. Quando se ouvia o barulho da chegada do bonde, Dona Flor começava a tocar os acordes de “La Cumparsita”. Nos finais de semana, enquanto ela tocava, eu – um garoto pobre, intanguido, magrinho, veja que eu nunca cresci,sempre Peter Pan – ficava em pé, na beirada do palco. Uma das minhas primeiras paixões foi por uma negrinha que trabalhava lá. Naquele momento, os teatros de revista eram famosos em Belém. Hoje, não há mais nada disto. Belém sob certos aspectos andou para trás.
Estes teatros de revista de Belém pareciam com os cariocas, que eram cheios de malícia e apresentavam garotas com pernas de fora?
Eram cheios de malícia, com tudo que tinham os teatros de revista cariocas. Nas festas de Nazaré quem fazia sucesso eram estes artistas paraenses. Depois, acabaram com isto.
Os artistas eram aqueles dirigidos pelo Félix Rocque, pai do jornalista Carlos Rocque?
Ao contrário, o pai do Carlos Rocque acabou com estes grupos porque começou a trazer artistas famosos, de fora do Pará. Não só estes grupos eram daqui. Também os textos que eles usavam eram de autores nossos. Aliás, sobre a História do nosso teatro há uma obra em dois volumes escrita pelo Vicente Salles que escreveu também sobre a nossa música. Havia quem dissesse: “O Cláudio Barradas é o pioneiro do nosso teatro.” Conversa fiada. Nem eu nem a Margarida Schiwazappa somos os pioneiros do nosso teatro. Antes de nós, havia teatro praticamente em todos os bairros de Belém, alguns até com orquestra. E mais: houve época em que existia em Belém grupo de teatro que mandava fazer seus cenários em Milão. Havia grandes atores e grandes autores. Depois, ocorreram um corte e um hiato brutais.
Com o Golpe Militar de 1964?
Não. Com o Golpe Militar houve um assassinato da nossa cultura.
Quando, então, houve este outro corte no desenvolvimento de nossa cultura?
Foi antes, quando acabou toda aquela febre do Ciclo da Borracha. Dizem que algumas artistas que vieram para Belém, naquela época, acabaram na zona do meretrício. Já tivemos a honra de dispor de prostitutas polacas.
Por isto, que o antropólogo Márcio Meira prega a necessidade de se fazer o registro da História do velho meretrício, de Belém, aquele da Rua Riachuelo.
No ciclo da borracha, houve companhias de óperas europeias que vieram a Belém e não foram ao Rio de Janeiro e a São Paulo. Belém, naquela época, era uma das cidades mais importantes do Brasil, na área das artes. Grandes maestros moraram em Belém como Ettore Bosio e Carlos Gomes.
Você se interessa por ópera?
Quando entrei pela primeira vez para o seminário, com 12 anos de idade, eu tinha uma voz belíssima, de soprano. Perdi a voz, num espetáculo em que eu cantava uma Ave Maria. Isto porque eu já estava mudando de voz e os padres me forçavam a cantar como soprano. Minha voz de cantor foi embora quando eu me apresentava publicamente. Quando voltou, eu já era adulto e a voz estava deteriorada.
Vamos nos deter ainda mais um pouco na reconstituição do início de sua história. Seus antepassados eram portugueses?
O nome Barradas é espanhol. Eu tenho um amigo no Rio de Janeiro, com quem não me correspondo há décadas, que uma vez me mandou uma revista espanhola, na qual havia um artigo sobre um pintor espanhol chamado Barradas. A propósito deste nome vou contar um episódio ocorrido comigo em Teresina.
Uma vez eu fui a Teresina, onde nasceu minha mãe, com passagens paga pelo governo do Piaui, para assistir a uma peça de um autor carioca, João Falcão. O governo do estado pagou passagens para três pessoas: a atriz Regina Duarte, de São Paulo e o autor da peça, do Rio de Janeiro. Não sei por que cargas d’água, também pagou para eu ir, a partir aqui do Pará.
Fiquei hospedado no melhor hotel de Teresina. Mas eu, intelectual proletário, cometi a maior gafe. Acordei cedo e levei um livro para ler no refeitório, onde fui tomar café. Sentei numa mesa e li, li, li. As pessoas entravam, tomavam café, e, eu ainda continuava lá. Já eram oito horas da manhã. Até que não aguentei mais e gritei: “Garçom!”. O garçom se aproximou: “Pois não, doutor”. E eu: “Cadê o meu café?”. O garçom: “Doutor, o sistema aqui é self-service”. Que gafe a minha!