No domingo, 10 de agosto, Dia dos Pais, o Brasil enfrentou uma das situações mais paradoxais de sua história recente no setor elétrico. Com o frio intenso e o feriado nacional derrubando o consumo, enquanto a produção de energia seguia em alta, o sistema chegou perigosamente perto do colapso. Em Parelheiros, na zona sul de São Paulo, os termômetros marcavam 2,5 °C, e o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) foi obrigado a cortar cerca de 90% da geração nacional para evitar um apagão.
Dessa vez, porém, o problema não foi a escassez — como em 2001, quando o país racionou energia. O risco agora vem do excesso. O Brasil produz mais eletricidade do que consome, em grande parte devido à explosão da geração distribuída, sobretudo a solar residencial, aquela gerada nos telhados de casas e comércios.
Em 2001, o drama era a falta de chuvas, reservatórios vazios e apagões iminentes. Hoje, o desafio é o oposto: lidar com uma oferta excessiva em determinados horários. O crescimento vertiginoso da energia solar — descentralizada e incontrolável em tempo real — alterou radicalmente a dinâmica do sistema interligado nacional.
O ONS, responsável por equilibrar oferta e demanda, perdeu parte do controle sobre uma fatia considerável da geração, já que não pode ordenar a redução ou o aumento da produção das placas solares conectadas às redes de distribuição. Assim, para evitar sobrecarga, o operador tem sido forçado a reduzir drasticamente a produção das grandes usinas, especialmente eólicas e solares centralizadas, em um processo conhecido como curtailment — o corte forçado de geração.
Segundo a Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), entre outubro de 2021 e agosto de 2025, o Brasil deixou de aproveitar 39 terawatt-hora (TWh) de energia limpa — volume equivalente a todo o consumo do Nordeste em um ano. O impacto financeiro é brutal: R$ 6 bilhões em prejuízos, sendo metade apenas em 2025.
Um crescimento que fugiu do controle
O avanço da energia solar no Brasil foi meteórico. Em apenas uma década, a capacidade instalada saltou de 132 MW para cerca de 60 GW, tornando-se a segunda maior fonte da matriz elétrica nacional, atrás apenas das hidrelétricas.
Desse total, cerca de dois terços (37 GW) vêm da geração distribuída (GD) — sistemas instalados em residências, empresas e propriedades rurais. Estima-se que mais de 20 milhões de brasileiros estejam conectados a alguma forma de GD solar, seja individualmente ou por meio de consórcios e cooperativas de energia compartilhada.
O problema é que o crescimento aconteceu mais rápido do que a infraestrutura pôde acompanhar. O ONS e a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) sempre planejaram a expansão da rede de transmissão com base no aumento do consumo, não da oferta. Mas a popularização dos painéis solares alterou essa lógica.
“O avanço da geração distribuída se deu em ritmo tão acelerado que as previsões ficaram defasadas. Hoje, o volume de GD já atingiu o que estava previsto para 2030”, afirma Nivalde de Castro, coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), da UFRJ. “É algo absolutamente crítico”, completa.
Energia limpa, mas sem coordenação
O efeito colateral desse crescimento desordenado é uma cadeia de distorções técnicas e econômicas.
Durante o dia, entre 10h e 16h, os painéis solares injetam muita energia justamente no período em que o consumo é mais baixo. Quando o sol se põe e o consumo residencial dispara, a geração solar cessa — e o sistema precisa acionar usinas térmicas, muitas vezes poluentes e caras.
“A geração distribuída deveria ser marginal e não determinante. Caso contrário, coloca o sistema em risco e põe em xeque todo o modelo do setor”, alerta Elbia Gannoun, presidente da Abeeólica.
A Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) estima que R$ 30 bilhões em projetos estejam parados por falta de previsibilidade. “Há parques no Ceará e na Bahia em que o corte chega a 70% da geração”, diz Talita Porto, diretora técnico-regulatória da entidade. “Isso impacta diretamente o retorno financeiro e afasta investidores.”
O papel do Pará nesse cenário
Embora o Sudeste e o Nordeste concentrem a maior parte da energia solar do país, o Pará vem se destacando como um novo polo de crescimento no setor — tanto em residências quanto em projetos de geração compartilhada.
Segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), o Pará registrava, até meados de 2025, cerca de 57 mil sistemas de micro e minigeração distribuída, somando mais de 650 megawatts (MW) de potência instalada — um salto expressivo em relação a 2022, quando o Estado possuía menos de 200 MW.
O crescimento foi puxado principalmente pelas residências urbanas de Belém, Ananindeua e Santarém, que concentram cerca de 45% das conexões solares do Estado. Mas há também forte expansão em cidades médias como Marabá, Paragominas, Altamira e Castanhal, impulsionada por cooperativas e consórcios de energia.
Reportagem recente da Exame mostra que o Pará tem avançado também na geração solar compartilhada — modalidade em que um grupo de consumidores utiliza a energia de uma única usina remota. Novos empreendimentos em Moju e Paragominas devem atender 1,5 mil unidades consumidoras e somam investimentos próximos de R$ 17 milhões. Ao todo, o Estado já conta com cerca de 80 usinas solares compartilhadas em operação, número que deve dobrar até 2026.
A concessionária Equatorial Pará também aposta em programas de microgeração para comunidades rurais e áreas isoladas, combinando energia solar e baterias para reduzir o uso de geradores a diesel — um desafio histórico na Amazônia.
O que dizem os especialistas
O presidente da consultoria PSR, Luiz Barroso, avalia que o setor elétrico brasileiro vive um momento de ruptura. “A experiência do passado já não serve para o futuro. O sistema precisa ser modernizado. As ferramentas computacionais e de planejamento devem considerar a nova realidade: uma matriz mais descentralizada, intermitente e tecnológica”, afirma.
Já o pesquisador da FGV Energia, Paulo Cunha, resume o dilema atual: “O avanço foi tão rápido que não houve tempo para adaptar as redes. Isso impôs uma nova forma de operação a um sistema que não estava preparado para conviver com tamanha geração distribuída.”
Desafios e caminhos possíveis
O Ministério de Minas e Energia (MME) reconhece o problema e criou, em março de 2025, o Grupo de Trabalho do Curtailment, para diagnosticar as causas e propor soluções estruturais. As medidas estudadas incluem:
Ampliação das linhas de transmissão, priorizando regiões de maior concentração de energia solar;
Criação dos Operadores do Sistema de Distribuição (DSO), que dariam às concessionárias poder para coordenar fontes conectadas às suas redes;
Investimento em armazenamento, com baterias e hidrelétricas reversas (que bombeiam água entre reservatórios para armazenar energia);
Atração de novos consumidores intensivos, como data centers e indústrias de hidrogênio verde, para absorver o excedente diurno.
Um futuro promissor — se houver coordenação
O cenário é claro: o Brasil é uma potência mundial em energia limpa, mas enfrenta um paradoxo de modernização.
De um lado, há um avanço inegável da energia solar — cada vez mais barata, acessível e ambientalmente correta. Do outro, um sistema elétrico que ainda opera com lógica e infraestrutura do século passado.
O Pará, nesse contexto, se torna um símbolo de oportunidade e desafio. Com vasto potencial solar e crescimento consistente, o Estado pode ser protagonista da nova fase energética do país — desde que consiga expandir suas redes, criar programas de integração e atrair investimentos de forma planejada e sustentável.
Como resume Nivalde de Castro, da UFRJ: “A revolução da energia solar não é apenas tecnológica. É institucional. E o Brasil precisa aprender a governar sua própria abundância.” Fontes: O Estado de S. Paulo, Exame, ANEEL (Banco de Dados de Geração Distribuída – agosto de 2025), Abeeólica, Absolar, PSR, FGV Energia.















