O discurso de que a devastação da Amazônia é obra apenas de grileiros, invasores de terras, ladrões de madeira e fazendeiros irresponsáveis não corresponde mais à realidade. Relatório do Ministério Público Federal (MPF) mostra que assentados em projetos de reforma agrária do governo federal, que deveriam ser exemplo de uso sustentável da terra, também se juntaram ao exército de foras-da-lei que ameaça diariamente a floresta.
Diante da escalada do desmatamento ilegal em áreas destinadas à reforma agrária no oeste do Pará, o MPF expediu recomendação urgente ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) e ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA). O documento cobra medidas imediatas de regularização e proteção ambiental.
Um quadro alarmante
Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, os assentamentos federais já respondem por 22,3% de todo o desmatamento da Amazônia Legal, índice superado apenas pelas propriedades privadas — que, em comparação, ocupam uma área quatro vezes maior.
O alerta do MPF foi motivado por análises do Ibama que escancaram a gravidade da situação. Na região do Chapadão, em Santarém, 33 assentamentos acumulam déficit de mais de 341 mil hectares de reserva legal. Já em Uruará, município que liderou o ranking de desmatamento no Pará no primeiro trimestre de 2025, 64% da derrubada ocorreu dentro de assentamentos federais, incidindo sobre áreas que, por lei, deveriam estar preservadas.
Além disso, a investigação aponta que a ausência de registro claro das reservas legais no Cadastro Ambiental Rural (CAR) abriu espaço para sobreposição de cadastros individuais em áreas coletivas, permitindo fraudes, ocupações irregulares e a degradação de áreas protegidas.
Obstáculo à fiscalização e avanço da ilegalidade
O MPF alerta que a falta de delimitação precisa das reservas legais nos assentamentos enfraquece a fiscalização ambiental, favorece o avanço de atividades ilegais e compromete a função socioambiental da reforma agrária. Para os procuradores, a omissão do Incra, aliada à ausência de fiscalização coordenada, converte projetos que deveriam promover justiça social em mais um motor da destruição da Amazônia.
Recomendações do MPF
O documento, assinado pelos procuradores da República Thaís Medeiros da Costa e Rafael Nogueira Sousa, estabelece medidas duras e com prazos definidos:
Incra: registrar, em 60 dias, todas as áreas de reserva legal coletiva; criar grupo interinstitucional de monitoramento em até 90 dias; implementar, em seis meses, mecanismos de fiscalização, recuperação de áreas degradadas e educação ambiental; cancelar CARs irregulares sobrepostos às reservas coletivas.
Ibama: cobrar o registro imediato das reservas e atuar junto ao Incra em protocolos de fiscalização.
Semas: cancelar os CARs individuais sobre áreas coletivas.
MDA: fiscalizar e auditar a atuação do Incra, condicionando aprovações de contas ao cumprimento das obrigações ambientais.
Os órgãos têm 30 dias para responder ao MPF se acatam ou não a recomendação.
A lei e a realidade
A recomendação se baseia na Constituição Federal e no Código Florestal, que determinam a manutenção de 80% de cobertura nativa nas propriedades rurais da Amazônia Legal. Para o MPF, sem a proteção dessas áreas não há reforma agrária legítima, nem cumprimento de sua função social.
No entanto, os números expõem uma contradição brutal: assentamentos que deveriam simbolizar inclusão e sustentabilidade transformaram-se, em muitos casos, em territórios de devastação, equiparando assentados a grileiros, madeireiros ilegais e maus fazendeiros que há décadas dilapidam o patrimônio natural brasileiro.















