Na coluna VIDA passada foi levantada uma suspeita:
Conseguiremos libertar a Amazônia, antes que seja destruída para os nossos filhos e os filhos dos nossos filhos, pela exploração colonial imperialista, com a cumplicidade das elites brasileiras, se continuarmos – nós: os filhos da região – vivendo aqui sem nos entregarmos inteiramente a ela – nos fundirmos, na Floresta e suas cidades, as nossas raízes de árvores regionais humanas?
E citamos um exemplo de como isso foi feito, no Sertão, pelo escritor João Guimarães Rosa.
Como nos expressarmos com essa retaguarda de região que somos soterradamente, com essa retaguarda de oralidades, de lendas, de fábulas que historicamente têm melhor nos expressado como região e como sonho de região, como seres humilhados economicamente, politicamente, esteticamente, mas também como seres luminosos, de violenta riqueza vital?
Em sua outra geografia, como nenhum outro, Guimarães Rosa soube fazer o encontro revelador do seu destino individual com o destino da sua região, e, mais ainda, soube transformar esta região numa metáfora de toda a vida. Nele, em todos os seus livros-salmos, livros-santos, livros rituais de iniciação na existência, falam mitologias pessoais. E falam também as mitologias da sua região. Nele, Riobaldo é um homem e é os homens, qualquer um de nós e todos nós, e é também Guimarães Rosa. Nesse Guimarães Rosa, o Sertão é um sertão e é mais do que aquela região lá, geograficamente fixada num ponto qualquer da costa do planeta.
Quando faremos, plenamente – o mesmo: nós entregaremos inteiramente a Amazônia?
Esse tomar-se como indivíduo e ir mais além, para representar a comédia comovente do homem na vida, a comédia comum a todos os homens, homem tornando-se homens para até mesmo expressar melhor, de volta à unidade, a condição humana, o real em cada um de nós, e também esse tomar uma região para expressá-la como uma região específica e ir mais adiante, para fazer essa região valer como uma alegoria do real inteiro, como tem sido vivido da China à África, na Idade Média, hoje ou durante os primeiros clarões da invenção do fogo, essa operação, enfim, de mesclar destino individual e destino coletivo, região e mundo, realidade e imaginário, em demanda do real total, nós não a realizaremos apropriando-nos regionalisticamente da Amazônia. E nem entregando-nos ao modelo de realidade imposto a ferro pelo colonizador.
Será, antes, nos entregando, embriagadamente, a nossa condição de homens, digo: de inventores de uma mais vasta, será falando conforme a loucura que nos seduziu, como queria um insurrecto europeu que lutou contra a razão do imperialismo, e será, sobretudo, dando-se generosamente à vida, que nós a realizaremos.
Matar o olho culto herdado das tradições da opressão ocidental sobre nós. Abrir nesta noite regional um outro olho, nativo. Essas são as práticas urgentes. De uma perspectiva menos elementar, essa é a nossa fome mais urgente.
Contra o colonizador, nacional e estrangeiro, mas sem a miséria da xenofobia rancorosa, e insistindo nos valores da insolência e da transgressão.
Nosso nascimento como região depende de uma morte? Sim. Da nossa morte como miragem de região. E, por isso, e para isso, então, temos: posição: contra o regionalismo e ao mesmo tempo por uma revolução de região, só o mito e o delírio poderão alguma coisa.
E todos os sentidos advertidos contra os engôdos de uma História feita contra nós, por dominadores contra dominados.
Para realizarmos essa operação, precisamos aprender a ouvir as falas do inconsciente falante geral, que é de toda a região e de ninguém em particular – abaixo o emblema fixado contra a porta do imaginário amazônico, aquele que diz: “Propriedade Privada”.
Nesse imaginário, é esta região na verdade quem fala, e, através dela, falaremos todos nós.
Bastará deixar que ele nos diga algo. E escutar. Com muita humildade. Muita radical exasperação, também. E sonhando bastante os nossos sonhos, a todo instante. E deixando que esses sonhos, os individuais, se misturem com os sonhos da região. Porque, no fundo, só uma coisa sonha e nos sonha: a Vida.
É preciso dar-se, deliberadamente, a ela.
E é preciso insistir:
Nossa História só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor.
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