Bateu o desespero na empresa Agropalma, após a decisão do desembargador Leonam Cruz, do Tribunal de Justiça do Pará, que concedeu no sábado, 12, habeas-corpus em favor de 180 quilombolas da Comunidade da Balsa, derrubando uma polêmica decisão do juiz de Tailândia, Arielson Ribeiro Lima. Ela trata com extrema arrogância, uso de força armada e antipatia uma questão que envolve respeito aos direitos humanos e de ir e vir de populações vulneráveis.
O juiz de Tailândia havia acatado ação cautelar inominada em favor da Agropalma e determinado que a Polícia Militar vasculhasse a área onde estão as famílias e, no caso de encontrar armas, realizar prisões e apreensões, além de fazer varredura sobre supostos crimes ambientais.
Ao mesmo tempo, atirando em outra direção, a empresa ingressou na Vara Agrária de Castanhal no dia 10, sexta-feira, pedindo a reintegração de posse da fazenda Roda de Fogo, onde está localizada a área quilombola. Mas ao usar o poder de cautela, o juiz André Filo-Creão da Fonseca, em manifestação do dia 11, não julgou o pedido da Agropalma, optando por realizar uma audiência pública na Cãmara Municipal do Acará, às 9 da manhã do dia 17, na próxima quinta-feira.
Na juntada pela Agropalma dos documentos contidos nas cansativas 848 páginas de seu pedido ao juiz, para retirar os quilombolas das terras, chamou a atenção uma cópia de inscrição de pedido de análise do Cadastro Ambiental Rural (CAR), além de cópia de Licença de Atividade Rural (LAR) protocolados na Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas).
O detalhe é que esses dois documentos foram emitidos com base em registros falsos das terras – incluindo o da fazenda Roda de Fogo – já devidamente cancelados por decisão judicial com trânsito em julgado, uma vez que a própria Agropalma não recorreu.
Ouvido pelo Ver-o-Fato, um advogado especialista no assunto foi taxativo ao dizer que a Agropalma apresenta esses dois documentos ao juiz André Filo-Creão em flagrante má fé processual, tentando induzir o magistrado a erro na ação de reintegração de posse da Roda de Fogo.
Escritórios afilhados do poder
Na semana passada, quatro novas ações foram protocoladas na Justiça Estadual, uma de autoria do MP Estadual, outra da Defensoria Pública, e duas da própria empresa paulista. E, justamente quando não se imaginava mais que a Agropalma pudesse inovar, eis que surge mais uma, no mínimo curiosa. A contratação de advogados que trabalham no escritório do procurador-geral do Estado, Ricardo Sefer, que por imperativo legal dele está afastado, embora espiritualmente não ausente.
Caberia como uma luva a velha citação de Hamlet: “há algo de podre no reino da Dinamarca”. Então, vale recordar que, em 2014, transitou em julgado uma ação avocatória cujo objeto atinge exatamente estas terras das quais a Agropalma se diz dona. Essa ação é de autoria da própria PGE e deveria hoje estar em fase de cumprimento de sentença. Contudo, permanece à deriva, esquecida, ou guardada nas gavetas da conveniência de Ricardo Sefer.
Nada acontece por obra do acaso. A razão de tanto esquecimento das obrigações da PGE se descortina quando se lê nas enfadonhas 848 páginas da ação n° 0800694-55.2022.8.14.0015, de reintegração, ou manutenção de posse contra os quilombolas os nomes dos advogados Rodrigo Costa Lobato e Tiago Nasser Sefer, que são respectivamente, advogado que atua no escritório Sefer e o irmão e sócio do PGE, também no escritório Sefer.
Enfim, quem deveria estar executando a decisão transitada em julgado na ação avocatória, hoje, defende a empresa que grilou mais de 100.000 hectares. E assim caminha a humanidade no mundo jurídico paraense.
Entre os documentos que eles apresentam, é preciso observar que nem tudo é o que parece. Vejamos:
Ausência de CAR
O espelho do pedido renovação da Licença de Atividade Rural informa que o CAR, juntado pela Agropalma nos autos da Ação de Reintegração de Posse ainda está sob análise e não teve a sua emissão liberada pelo Sicar. Ou seja, ela não tem CAR. É importante destacar que o processo estava parado e teve seu movimento retomado dia 9 deste mês.
Licença ambiental irregular
A Instrução Normativa de nº 14/2011, em seu artigo 9º, §2º, determina que “no caso de cancelamento da propriedade rural com trãnsito em julgado pelo Poder Judiciário, não subsistirá a Licença de Atividade Rural (LAR) “. A inteligência da norma não permite o licenciamento da atividade pela Agropalma e o cancelamento da LAR é matéria de ordem pública que deve ser tratada pelo poder judiciário na audiência do próximo dia 17, na Câmara Municipal do Acará.
Processo do Iterpa é irregular
A Agropalma junta como anexo o processo de pedido de compra da fazenda Roda de Fogo. Para fazer uma análise sobre o processo administrativo da empresa perante o iterpa, é necessário fazer menção aos conceitos de adquirente de boa-fé e de posse mansa e pacífica na Lei de Terras, de nº 8.878/2019.
O artigo 5º, IX, conceitua que a posse mansa e pacífica é aquela exercida sem oposição de terceiro. Já o Artigo 5º, XV, conceitua que o adquirente de boa-fé é o ocupante atual e direto, pessoa física ou jurídica, que adquiriu bem imóvel de outrem, acreditando tratar-se de terras privadas, sem que haja cometido qualquer ato na condição de autor, coautor, ou participe de práticas espúrias e/ou de fraude de apropriação de terras públicas.
Sobre o processo do Iterpa é importante destacar que a Lei de Terras de nº 8.878/2019, na inteligência do artigo 10, §10, II, veda a possibilidade de regularização fundiária por quem tenha praticado fraude em processos relativos a terras. O Decreto Estadual 1.190/20 em seu artigo 63, II, veda a regularização fundiária aos que tenham participado de forma direta ou indireta de fraude em processos relativos à regularização fundiária.
Memória viva
Para refrescar a memória dos esquecidos: a Agropalma mantém em seus armários a decisão de 10 de agosto de 2020 do juiz André Filo-Creão da Fonseca. Ele determinou o cancelamento das matrículas em cartórios de 12 fazendas, totalizando 23 mil hectares, alegadas pela Agropalma como propriedades dela. E entre as áreas canceladas está justamente a fazenda Roda de Fogo, hoje inclusive na mídia nacional e pauta de matéria até na Rede Globo.
”Reconheço a falsidade e nulidade de todos os documentos que subsidiaram a lavratura das escrituras públicas de compra e venda”, escreveu o magistrado na sentença, fixando multa diária de R$ 50 mil caso a decisão dele fosse descumprida pela Agropalma ou se ela fizesse uso das terras em qualquer tipo de transação. Além da Agropalma, o Iterpa e o estado do Pará são réus nessa ação.
O juiz atendeu a um pedido do Ministério Público do Estado (MPPA), que move ação civil pública contra esses réus e uma certificadora da empresa. A sentença da Vara Agrária de Castanhal trata de áreas que foram criminosamente registradas pelo cartório “fantasma” Oliveira Santos, pertencente à cartorária Maria do Socorro Puga de Oliveira, presa pela Polícia Federal em março de 2018 juntamente com o filho dela, Antônio Pinto Lobato, que nunca foi cartorário, mas assinava documentos, dando fé pública às fraudes.
Ainda em julho de 2020, o mesmo juiz André Luiz Filo-Creão já havia tomado outra decisão importante, mandando bloquear em cartórios da região os registros de outras 12 fazendas da empresa paulista, pertencente ao banqueiro Aloisio Faria, um dos homens mais ricos do país, já falecido. As terras com registros bloqueados alcançam 35 mil hectares.
Resumo do caso: a conta das ilegalidades apresentada pelo Poder Judiciário à Agropalma já soma 24 fazendas e 58 mil hectares, entre bloqueios e cancelamentos de matrículas nos cartórios de Moju, Acará, e Tailândia, além de cartórios de registro de imóveis de Belém. O tamanho total das áreas sob litígio judicial chega a 106 mil hectares.
Em virtude desses bloqueios e cancelamentos, a Agropalma está impedida pela Justiça de fazer qualquer transação comercial, como vender, arrendar ou oferecer as terras como garantia de negócios bancários. As fraudes descobertas envolvem terras públicas e privadas. As áreas particulares são reivindicadas judicialmente pela família do sr. José Maria Tabarana.
Afirma o MP do Pará que, no que se refere às 12 áreas com matrículas canceladas, os documentos do cartório “fantasma” Oliveira Santos foram assinados pela tabeliã Maria do Socorro Puga de Oliveira em data posterior ao afastamento dela do comando do Cartório do Acará. Segundo o fiscal da lei, o afastamento de Maria do Socorro ocorreu em outubro de 2005, ocasião em que foi nomeado Francisco Valdete Rosa do Carmo como interventor. Valdete é réu na Justiça Federal por supostamente receber propina da Agropalma para lavrar certidões fraudulentas em favor da empresa.
As escrituras públicas de compra e venda ”subsidiadas em documentos falsos foram lavradas no Cartório Diniz – 2º Ofício de Belém, sendo elas as de números L 573, fl. 38, de 28 de agosto de 2006; L 570, fl. 060, de 25 de abril de 2006 e L 570, fl. 94, de 25 de abril de 2006, por intermédio das quais a demandada Agropalma S/A adquiriu as áreas que compõem as chamadas Fazendas Roda de Fogo e Castanheira”, acusa o MP.
Vícios e fraudes
A atual Fazenda Roda de Fogo era composta pelas áreas denominadas Três Estrelas, Paraíso do Norte, Roda de Fogo, Esperança, Santa Maria, Jomam e São João. Por sua vez, a Fazenda Castanheira era composta pelas áreas conhecidas por Castanheira, Castanheira I, Castanheira II e Castanheira IV.
Também enfatiza que “há vícios na documentação da atual Fazenda Roda de Fogo, uma vez que da análise da mesma, infere-se que há documentos nos quais constam selos do fictício Cartório Oliveira Santos e a assinatura de Antônio Puga Lobato Filho, que jamais fora tabelião, bem como assinaturas de Maria do Socorro Puga de Oliveira, mãe de Antônio, em data posterior ao seu afastamento pelo Tribunal de Justiça do Pará”. A situação é a mesma da atual Fazenda Castanheira. Ou seja, o MP afirma existirem “vícios de origem que impedem a aquisição regular do domínio” pela Agropalma.
Célia Regina desmonta boa fé
Vale lembrar que em outubro de 2021, durante julgamento pela 1ª Turma de Direito Público do TJ paraense de um agravo da Agropalma, a decisão da Vara Agrária de Castanhal foi mantida com voto unânime dos desembargadores daquele colegiado. A empresa foi proibida de fazer qualquer tipo de negociação dos imóveis, sob pena de multa diária de R$ 50 mil. A relatora do recurso foi a desembargadora Célia Regina Pinheiro, atual presidente do Tribunal.
“Na espécie, as certidões de matrículas dos imóveis objeto do negócio foram emitidas por órgão inexistente, tendo como signatárias pessoas desprovidas de atribuição pública, tudo a ressoar na ilicitude de elemento constitutivo do próprio ato negocial, qual seja a legitimidade do vendedor, já que duvidosa a qualidade de proprietário dos bens. Portanto, o negócio assenta-se inquinado de vício de pleno direito, sendo impassível de gerar efeitos”, afirmou Célia Regina no voto, seguido pelos demais colegas de corte.
A atual presidente do TJ também afastou a alegada “boa fé” da Agropalma na compra das terras. “O princípio da boa-fé objetiva não é oponível face ao negócio jurídico nulo, pois erigi-lo ao condão de elidir o vício intrínseco ao ato, importaria em tentativa de convalidá-lo, medida que, consoante o exposto, não encontra guarida no sistema vigente. Inteligência dos arts. 1200, 1201 e 1247 do Código Civil. Impõe-se, portanto, a manutenção da sentença”, fulminou Célia Regina.