O “danado” Adamor Filho |
suicídio no noticiário sempre foi preventivamente abandonado. Uma
convenção não escrita, espécie de acordo de cavalheiros entre
jornalistas e jornais, decretou que suicídios – atos brutais de arbítrio
individual – não eram notícia de interesse público e não seriam
publicados.
Não se sabe, precisamente,
quando, como, por que e onde o pacto profissional começou. No tempo em
que percorri as ruas de Belém nos fusquinha azul e branco do Liberal
como repórter policial, dizia-se que as notícias de suicídios turbinavam
a ânsia de suicidas à beira do abismo. Por isso, o freio de arrumação. O
batalhão de repórteres setorizados chegava ao PSM ou ao IML e os
próprios servidores se encarregavam de estancar a avidez. “Tem um aí,
mas foi suicídio”.
Havia exceções, porém. O radialista Adamor
Filho, um dos maiores nomes do radiojornalismo policial do Pará, não se
importava muito com essa convenção da profissão em torno do suicídio.
Ressuscitei Adamor ao lembrar que hoje, em algumas regiões do país,
coleguinhas e empresas sensacionalistas estão atirando o acordo na lata
do lixo.
Adamor e o seu “A Patrulha da Cidade”, da Rádio
Marajoara, eram um escândalo de audiência no rádio. Bem na hora do
almoço. Durante o dia, desde a madrugada, ele entrava com matérias sobre
o submundo da cidade sempre que a morbidez do fato justificasse uma
nova notícia.
Teste para cardíaco, o programa dele mantinha
grudados no rádio ouvintes cativos, de qualquer idade. Os mais velhinhos
se agarravam às últimas forças para chegar vivos ao fim do programa de
uma hora de pura tensão, altíssima tensão. Eu mesmo tinha uma tia idosa
que ficava a ponto de um AVC, mas não perdia um programa.
O
suicídio que Adamor noticiava, quando não havia “notícias melhores”, era
anunciado ao longo do programa por teasers (aperitivos) pensados para
aumentar a audiência. Subiam, por tabela, a adrenalina e a angústia do
ouvinte.
Narrado dramaticamente, com a voz que Adamor
artificialmente impostava para ficar ainda mais grave, o suicídio era o
prato principal. Naquele tempo, em Belém, dez entre dez suicidas
escolhiam o edifício Manoel Pinto. Era o cenário perfeito para a novela
que Adamor criava para contar o gesto mais capital da fraqueza humana.
Certamente sádico, ele noticiava para seus masoquistas ouvintes o
suicídio em capítulos! A tortura para uns e o completo deleite para
outros demorava uma hora de programa.
Ao microfone, com música
fúnebre vibrante subindo sempre para preencher as longas pausas do
radialista, Adamor justificava o apelido de “O Danado” e deixava o
programa do jeito que o diabo gosta.
– O corpo…(sobe som de terror)…se projetou no vácuo…
Entre o arremesso e o desfecho fatal, no asfalto da Serzedelo Corrêa ou
do início da avenida Nazaré ou, ainda, alguma pedra de marquise no meio
do caminho, Adamor fazia o escambau ilustrado ao microfone. Ia da
tragédia ao humor negro e à evidente invasão de privacidade do morto,
tudo em nome da concorrência e, claro, do interesse público expresso
pelo altíssimo índice de audiência.
-…e se estatelou…numa poça de sangue rubro!!
Aí, o controlista da rádio subia o som total, fazendo uma barulheira
infernal, enquanto as velhinhas se seguravam nas cadeiras das mesas da
cozinha e nos sofás da sala, a um passo do cataclisma e de virarem
notícia no programa predileto.
Dono de um faro incomum para a
reportagem policial, Adamor entrou para a história do radiojornalismo
como um fenômeno de audiência, fato que o levaria a quatro mandatos de
vereador em Belém nos anos 1970 e 1980. Começou no rádio em 1963, como
radioator. Então, para ele, romancear um suicídio era fichinha.
Depois de mais de 40 anos no rádio, percorrendo quase todas as
emissoras para retornar no fim da carreira à Marajoara (cada emissora
daria um livro), o hipertenso Adamor morreu no dia 31 de julho de 2006,
na praia do Caripi, em Barcarena, onde passava as férias. Foi alcançado
em pleno sono por um infarto. O corpo veio por ironia para um lugar que,
modo de dizer, testemunhou silenciosamente todos os dias a brilhante
carreira do radialista: o IML.
Que a terra lhe seja sempre leve.
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