Por entender que ao decidir relaxar as regras do isolamento social em relação ao combate à propagação do coronavírus no Pará, o governo do Estado ignorou informações de um dos estudos utilizados e não respeitou critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União ajuizaram ontem ação civil pública na Justiça Federal, com pedido de tutela de urgência, insistindo em pedir a suspensão do comércio e demais atividades e serviços não essenciais em todo o Pará.
MPF e DPU também citaram outros fatores desconsiderados pelo governo e pesquisas científicas que indicam ser precipitado considerar que a taxa de contágio no Pará está estável ou em diminuição. E mesmo que tenha ocorrido redução da taxa de contágio, a taxa ainda é alta no Pará, tornando inviável e perigosa qualquer medida de abertura, destacam os procuradores da República e os defensores públicos federais.
“Portanto, pode-se afirmar sem sombra de dúvidas que a atitude do Estado do Pará é inconsequente e não encontra respaldo na ciência. O preço de ignorar a ciência pela segunda vez será, como ocorreu antes, a vida de milhares de inocentes. Quem será o responsável por isso?”, afirmam os autores da ação em um trecho do documento de 39 páginas.
Os dois órgãos pediram novamente que o Estado do Pará seja obrigado a apresentar motivação técnica para todas as suas futuras decisões relacionadas à pandemia da Covid-19. Também voltaram a pedir melhoria da transparência sobre os dados relativos à elaboração e execução de políticas públicas de enfrentamento ao vírus.
Segundo a ação, um dos estudos que o governo paraense considerou para decidir pela redução do isolamento em nenhum momento recomenda essa reabertura. Pelo contrário, inclui itens importantes que aparentemente não foram considerados pelo Estado. Denominado “Redes Neurais Artificiais e Modelagem Matemática nas Previsões Epidemiológicas para os Casos de Infecção por Covid-19”, o estudo da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) adverte que “a subnotificação de casos e óbitos altera a realidade da pesquisa, devendo haver o reprocessamento constante dos dados”.
O estudo também registra que “o avanço da pandemia para o interior do Estado, somado à taxa de adesão da população às medidas de combate ao vírus, influenciará a projeção do tempo de duração da pandemia”. Advertências feitas pela UFRA em boletins sobre a pandemia veiculados poucos dias antes e poucos dias depois da publicação do estudo comprovam que é falso que a universidade tenha concluído expressamente pela segurança da flexibilização neste momento, explicam os procuradores e defensores.
Segundo os boletins, “o afrouxamento prematuro das medidas de controle e de isolamento influencia no modelo e pode causar novos picos da infecção”.
Critérios da OMS não atendidos
A OMS orienta que a flexibilização segura do isolamento social depende do controle efetivo da transmissão. “A transmissão da Covid-19 deve estar controlada, em um nível de casos esporádicos e clusters [grupos] de casos, sendo todos de contatos conhecidos ou importados; no mínimo, novos casos devem estar reduzidos a um nível que o sistema consiga absorver, com base na capacidade dos serviços de saúde”, diz trecho de documento da OMS destacado na ação.
Sobre os critérios de conferência do controle da transmissão, a OMS indica que o período de duas semanas é o tempo mínimo de avaliação de tendências, por ser o período máximo de incubação da doença, e estabelece que o melhor indicativo de que a epidemia está controlada e em queda é quando o número de pessoas que cada portador do vírus infecta é menor que um, em média.
No entanto, segundo o Covid-19 Analytics, modelo estatístico desenvolvido por professores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), a taxa de contágio no Pará está em 2,77 novos contaminados para cada pessoa infectada, ou em 1,55, conforme estudo do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade Federal do Pará (UFPA), relatam.
Outros dois critérios-base estabelecidos pela OMS para a definição do momento ideal de flexibilização das normas de distanciamento social são a garantia de que o sistema de saúde consegue lidar com o ressurgimento de casos da doença que pode ocorrer após a redução do isolamento, e a certeza que o sistema de vigilância em saúde pública é capaz de detectar e gerenciar os casos e seus contatos, e identificar um ressurgimento de casos.
De acordo com a ação, os documentos utilizados pelo governo do Pará para decidir pela flexibilização – o relatório técnico da Ufra e nota técnica da Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa) – também não comprovam o preenchimento desses dois outros critérios.
“Na verdade, os dados disponibilizados pelo próprio Estado demonstram que ainda nos encontramos em situação crítica na ocupação de leitos de UTI, uma vez que no Estado inteiro, atualmente, 87,21% de leitos de UTI exclusivos para covid-19 estão ocupados”, reforçam os signatários da manifestação, ressaltando que esses são níveis alarmantes”, apontam.
Sobre a capacidade de detecção e gerenciamento de novos casos pelo sistema de vigilância em saúde pública, outro critério previsto pela OMS, MPF e DPU constatam que os casos dificilmente são detectados e acompanhados a tempo. “Na verdade, a subnotificação é tamanha que, recentemente, no dia 28 de maio, foram divulgados, de uma única vez pelo Estado do Pará, impressionantes 15 mil casos e quase mil óbitos que se encontravam subnotificados”, explicam.
Outros fatores não considerados pelo Estado
Outros fatores não foram considerados nos estudos apresentados pelo governo do Estado, o que segundo os procuradores e defensores, demonstram ser precipitado falar em estabilização e, pior ainda, em redução da taxa de contágio.
Um deles é a subnotificação de casos e mortes, o que fragiliza os dados utilizados pelos modelos matemáticos que preveem a disseminação da doença. “Há muito mais mortes por Covid-19 no dia de hoje do que parecem revelar os dados oficiais, haja vista a demora na testagem e na divulgação de seus resultados. Isso significa que qualquer análise feita com dados de hoje ou dos últimos dias está sujeita a altíssimo grau de erro”, frisam.
A ação ressalta que o número real de casos e mortes pela doença pode ser pelo menos sete vezes maior que os números contabilizados oficialmente conforme estudos de pesquisadores da Ufra, UFPA, Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A ação cita entrevista divulgada no último dia 28 de maio, em que uma das responsáveis pelo modelo matemático utilizado no estudo apresentado pelo Estado, a professora da Ufra Evelin Cardoso, diz que “sem os números verdadeiros da epidemia, a tomada de decisões por parte das autoridades é feita baseada em um cenário que não reflete a situação real”.
Sobre a chamada “imunidade de rebanho”, citam avaliação feita por professor infectologista da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Unaí Tupinambás. Segundo ele, essa estratégia geraria enorme custo em vidas humanas, e o melhor caminho a seguir é manter o isolamento e achatar a curva epidêmica.
Em relação às informações divulgadas pela Sespa, a ação registra que a secretaria passou a adotar uma metodologia confusa, informando os casos e óbitos que teriam ocorrido nas últimas 24 horas e, em separado, os casos e óbitos que teriam ocorridos em dias anteriores, por causa da subnotificação e do não envio de dados pelas prefeituras.
Além disso, a Sespa fracionou os boletins num único dia, divulgando mais de um e de forma não cumulativa. Essa forma de divulgação dos dados acaba dando a errônea impressão ao público de diminuição do número de casos, criticam os procuradores e defensores, que analisaram dia a dia os casos divulgados entre 20 e 28 de maio e calcularam que houve dias em
que o número de casos quadruplicou, e o número de mortos dobrou, na comparação com o dia anterior.
Veja a íntegra da Ação Civil Pública
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