O Tribunal de Justiça do Pará registrou um caso de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes por dia no estado. O levantamento, da Comarca de Belém, abrange de janeiro até a primeira quinzena de maio deste ano. De acordo com o TJ, foram registrados nestes meses,167 processos de crimes contra a dignidade sexual na 1ª Vara de Crimes contra Crianças e Adolescentes da Capital.
A Vara processa e julga exclusivamente crimes contra a dignidade sexual. Em 2019, foram registrados 464 processos, o que representa mais de um caso diário só na Comarca de Belém. Em 2018, foram 291 processos distribuídos na Vara, que tem à frente a juíza Mônica Maciel Soares da Fonseca.
“Nos processos em tramitação, observa-se o aumento no número de feitos distribuídos, nos anos de 2019 e 2020, em relação a 2018 e aos anos antecedentes, o que representa não propriamente um aumento no número de casos de violência sexual, mas sim aumento no número de notificações. Ainda há muita subnotificação”, observa a magistrada.
A juíza explica que o problema da subnotificação faz com que somente 10% dos casos cheguem ao conhecimento das autoridades competentes. “Exatamente porque a maioria dos casos ocorre no ambiente intrafamiliar, onde os familiares não querem, de regra, a punição do agressor. Muitas vezes, buscam responsabilizar a própria vítima, que já se sente culpada pelo ocorrido, ou fazem questão de demonstrar que não acreditam nela, quando é feita a revelação do abuso sexual”, diz Mônica Fonseca.
Para ela, a campanha Maio Laranja é imprescindível para que a sociedade possa colocar no centro dos debates a necessidade de prevenção e combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes. “As consequências para a vida das vítimas são muito sérias e podem se tornar irreversíveis, cabendo ressaltar que no Setembro Amarelo, campanha de prevenção ao suicídio, foram expostos números preocupantes, que apontaram aumento significativo no número de suicídios, na faixa etária compreendida entre 8 e 14 anos de idade”, aponta.
Em meio à pandemia do coronavírus e do isolamento social, o risco para crianças ainda se torna maior, pois, na avaliação da juíza, estão convivendo mais diretamente com o agressor, uma vez que quase 90% dos casos que envolvem violência sexual e outros tipos de violência contra crianças e adolescentes ocorrem no ambiente intrafamiliar, praticados por quem tem o dever legal de proteger a vítima, mas viola os seus direitos.
Uma mulher de 45 anos, que será identificada, relatou que sofreu abuso sexual quando tinha 11 anos de idade. O crime foi praticado pelo primo em Belém. “O medo me consumiu por muitos anos. A pessoa que me abusou conseguiu que eu me calasse. Me metia medo. Com esse medo, eu achava que eu era a culpada do que aconteceu”, conta.
“Vamos denunciar. Não deixe que eles se tornem adultos vazios, tristes no futuro. Vamos combater esses crimes que há muito tempo vem acontecendo e a sociedade fica calada. Não vamos nos calar mais. Vamos tirar a máscara do abusador. Ele precisa pagar o mal que fez. A criança ou adolescente precisa ter a vida digna”, alerta.
Números dos crimes sexuais
A unidade especializada em crimes contra a dignidade sexual tem 977 processos e inquéritos de estupro de vulnerável; 106 de estupro qualificado; 104 de estupro (antigo crime de atentado violento ao pudor); 14 processos de importunação sexual; um de tráfico internacional para fins de exploração sexual; 20 de exploração sexual de crianças e adolescentes e favorecimento à prostituição; 48 processos de pornografia infanto-juvenil, do quais quatro estão julgados em grau de recurso e 257 procedimentos cautelares.
O acervo processual da Vara demonstra o total de 1.808 processos somente na Comarca de Belém, incluindo processos julgados, que se encontram em grau de recurso, pois poderão retornar à unidade após julgamento em 2º Grau.
A juíza Mônica Fonseca destaca a entrada em vigor da Lei nº. 13.431/2017, em 5 de abril de 2018, que prevê a obrigatoriedade da escuta protegida de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência, por meio da escuta especializada e do depoimento especial.
A magistrada enfatiza o artigo 11, parágrafo 1º, inciso II, do referido diploma legal, que prevê o rito cautelar de antecipação de prova para o depoimento especial, em caso de violência sexual. O Fórum Criminal de Belém já conta com três salas para a prestação de depoimentos.
Segundo a juíza, o rito cautelar de antecipação de prova para o depoimento especial de crianças e adolescentes, com a oitiva das vítimas antes do oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, configura importante instrumento processual de preservação da memória de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.
De acordo com Mônica Fonseca, antes dessa modificação, as vítimas, com frequência, mudavam a versão dos fatos, em juízo, por pressão familiar. Ela ressalta que a vítima acabava sendo pressionada e obrigada a não apontar o verdadeiro autor.
“Como a sua palavra tem relevância, enquanto elemento probatório, em crimes dessa natureza, praticados às escuras, sem testemunhas oculares, muitas vezes, vencia a impunidade, com a absolvição de culpados, que negavam a autoria, sobretudo, nos casos de laudos periciais de exame sexológico forense que não apontavam vestígios materiais (de conjunção carnal ou outros atos libidinosos) e mesmo nos que registravam sinais de violência”, detalha.
Maio Laranja
O 18 de maio foi instituído como o Dia Nacional do Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes por meio da Lei Federal nº. 9.970, de 17 de maio de 2000, em virtude da repercussão de um grave crime, ocorrido em 1973, conhecido como “Caso Araceli”, envolvendo uma menina de oito anos, desaparecida em Vitória (ES) e encontrada, dias depois, sem vida, desfigurada e com sinais de violência sexual.
A campanha Maio Laranja objetiva sensibilizar os profissionais da saúde, da educação e a sociedade em geral, sobre as graves consequências da violência sexual na vida de crianças e adolescentes. A campanha foi inspirada na flor do gênero Gerbera, que possui várias tonalidades, incluindo a cor laranja, simbolizando a fragilidade de uma criança.
A Vara em números:
Processos distribuídos de janeiro até 14 de maio: 167
Em 2019: 464
Em 2018: 291
Tipos de crime contra a dignidade sexual
Estupro de vulnerável: 977 processos e inquéritos
Estupro qualificado: 106 processos e inquéritos
Estupro (antigo crime de atentado violento ao pudor revogado pela Lei nº. 12.015/2009): 104 processos e inquéritos
Importunação sexual: 14 processos
Tráfico internacional para fins de exploração sexual: 1 processo
Exploração sexual de crianças e adolescentes e favorecimento à prostituição: 20 processos
Pornografia infanto-juvenil: 48 processos, sendo quatro julgados em grau de recurso
Procedimentos cautelares: 257 ocorrências
Acervo total: 1.808
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