Belém perdeu boas obras construídas durante as gestões de Antônio Lemos porque a própria população as destruiu, antes de expulsar da cidade o antigo intendente, em chocantes episódios de violência e humilhação pública.
O chalé de ferro onde ele morava, a sede original de A Província do Pará, e, a rede de quiosques construídos por ninguém menos que Francisco Bolonha, o mesmo construtor de dois imponentes palacetes de nossa capital, o Bolonha e o Bibi Costa.
Da beleza destes quiosques restou o que se pode ver no exemplar do Bar do Parque, milagrosamente salvo, talvez graças à sua dimensão e robustez.
Os quiosques se espalhavam por “praças, avenidas, ruas, estradas e travessas”, conforme fora estabelecido o contrato assinado, no dia 30 de novembro de 1906, por Lemos.
Através do contrato foi conferida a Francisco Bolonha a responsabilidade pelas construções daquela rede.
O trabalho de Bolonha seria pago, segundo o contrato, com o direito conferido a ele de explorar os quiosques por 20 anos.
Desde que, porém, Bolonha atendesse a diversas exigências.
E, ao final do contrato, aceitasse que os quiosques fossem incorporados ao patrimônio de Belém.
Eles eram “lojas em miniaturas”, próximas dos clientes, acessíveis e econômicas, como os descreve Claudie Bony, em “Uma História de Quiosques”.
Funcionaram como “cafés, botequins, confeitarias, quitandas, charutarias, papelarias, livrarias, perfumarias, drogarias, mercearias, joalherias”, e, bazares.
Neles podiam ser vendidos, calçados, fazendas, armarinhos, quinquilharias, ferragens, jornais, revistas, cartões postais, bilhetes de loterias, e “artigos de carnaval”.
E, curiosamente, caldo de cana.
Não podiam, porém, oferecer artigos que comprometessem “o asseio e a boa higiene”, como “carnes frescas ou salgadas, peixes frescos, vísceras, banhas, toicinhos”.
Os pequenos estabelecimentos tinham permissão para permanecer sempre abertos, inclusive à noite e nos domingos e feriados.
Mas, deviam ser conservados “em perfeito estado de pintura, interna e externamente”, submetendo-se à fiscalização de funcionários municipais, pagos pelo próprio Bolonha.
Sua clientela em princípios era formada por operários – a “arraia miúda” – e por membros da pequena burguesia, que quisessem beber algo, comprar jornal ou bilhete de loteria, ou ainda “dar um dedo de conversa com os vizinhos”.
Mas, acrescenta Bony, também se sentiam atraídos para os quiosques estudantes e a própria elite intelectual.
Dois tipos de quiosques foram construídos por Bolonha, ambos de madeira e ferro, com forma circular ou poligonal, como impunha aquele contrato.
O menor tinha um só pavimento, largura máxima de 4 metros, e, 4,50 metros de altura.
O maior, dois pavimentos.
Cada qual com 3,50 centímetros de largura máxima, e, até 4 metros de altura.
Durante cinco anos, o contrato com Bolonha vigorou.
Neste período, a sobrevivência dos quiosques foi ajudada pela Intendência com a dispensa dos pagamentos de todos os impostos municipais.
No dia 1 de outubro de 1911, porém, os quiosques foram destruídos.
O que aconteceu naquele dia é possível reconstituir, graças à pesquisa realizada pelo jornalista Carlos Rocque, para o livro “Antônio Lemos e sua época”.
Àquela altura, Lemos – com quase 70 anos de idade, organismo debilitado e desgastado politicamente pelo prolongado exercício do poder – enfrentava a hostilidade da população, insuflada por seus adversários.
Eles estavam particularmente irritados com o fato de que Lemos tinha obtido autorização de seu partido para concorrer, sozinho, pela quinta vez, ao cargo de intendente de Belém.
“Boletins debochados e ofensivos à pessoa de Lemos circulavam, fartamente, pela cidade”, conta Rocque.
Dois dias antes, em 30 de setembro de 1911, incitados por aquela campanha, populares inutilizaram quase todas as lixeiras herméticas usadas pelos comerciantes do centro da cidade.
A Intendência havia imposto o uso delas em benefício da saúde pública.
Um dia depois, em 31 de setembro, um comício contra Lemos, realizado na Praça da República, exaltou ainda mais os ânimos da população.
Na manhã do dia 1º de outubro, uma arruaça de proporções assustadoras se espalhou pelos bairros do Umarizal, São Braz, Batista Campos, e, Cidade Velha.
Peixeiros do Ver-o-Peso quebraram os tabuleiros e os carros da Empresa Americana de Veículos, pertencente a Bolonha, visto pela população como um aliado de Lemos, relata Rocque.
Às seis horas da tarde, o primeiro quiosque foi destruído por cerca de 100 trabalhadores vindos do cais do porto.
Ficava na Boulevard Castilho França, esquina com a avenida Presidente Vargas.
O locatário tentou salvá-lo trancando-se nele.
Quase foi morto.
Naquele perímetro, entre o Ver-o-Peso e a Praça Visconde do Rio Branco, em seguida, onze outros quiosques foram arrebentados.
Alguns locatários tiveram tempo para retirar suas mercadorias antes que eles fossem virados e incendiados.
Mas a destruição do quiosque instalado na Presidente Vargas com a rua 28 de setembro provocou um prejuízo de 250 mil réis, uma considerável importância na época.
Os arruaceiros chegaram até o Largo de São Braz, onde quiseram investir contra o quiosque da estação da Estrada de Ferro de Bragança.
Ali, foram rechaçados pelos funcionários da empresa.
Às 20 horas, a destruição ainda prosseguia, atingindo o quiosque que ficava na Praça Dom Macedo Costa.
Este dia de selvageria se encerrou, por fim, com tão triste balanço.
Onze meses se passaram.
E, a destruição selvagem, chegou à casa de Lemos, aos bens guardados nela, e, a seu jornal.
*Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista
Translation (tradução)
The Savage Destruction of Belém’s Kiosks
Belém lost many fine structures built during the administrations of Antônio Lemos because the population itself destroyed them—before ultimately expelling the former mayor from the city in shocking episodes of violence and public humiliation.
Among the destroyed were the iron chalet where he lived, the original headquarters of A Província do Pará, and the network of kiosks built by none other than Francisco Bolonha—the same man who built two of our capital’s most imposing mansions, the Bolonha and the Bibi Costa.
From the beauty of these kiosks, only the structure of the Bar do Parque kiosk remains today—miraculously preserved, perhaps due to its size and sturdiness.
The kiosks had been spread across “squares, avenues, streets, roads, and alleys,” as stipulated in a contract signed by Lemos on November 30, 1906.
That contract granted Francisco Bolonha the responsibility for building the network.
According to the agreement, Bolonha would be compensated with the right to operate the kiosks for 20 years.
That is, as long as he met a variety of conditions.
And, at the end of the contract, he would have to agree to transfer the kiosks to the city of Belém as public property.
They were “miniature shops,” close to their customers, accessible and economical, as Claudie Bony describes them in A History of Kiosks.
They served as “cafés, taverns, confectioneries, grocers, cigar shops, stationery stores, bookstores, perfumeries, drugstores, general stores, jewelry shops,” and bazaars.
They sold shoes, fabrics, notions, trinkets, hardware, newspapers, magazines, postcards, lottery tickets, and “carnival goods.”
And curiously, sugarcane juice.
However, they were not allowed to sell items that could compromise “cleanliness and good hygiene,” such as “fresh or salted meats, fresh fish, offal, lard, and bacon.”
The small businesses were allowed to remain open at all times—even at night, on Sundays, and on holidays.
But they had to be kept “in perfect condition, both inside and out,” and were subject to inspection by municipal employees, whose salaries were paid by Bolonha himself.
Initially, their clientele consisted of workers—the “common folk”—and members of the petite bourgeoisie, who might stop by for a drink, a newspaper, a lottery ticket, or a quick chat with neighbors.
But, as Bony notes, students and even members of the intellectual elite were also drawn to the kiosks.
Two types of kiosks were built by Bolonha—both made of wood and iron, either circular or polygonal in shape, as required by the contract.
The smaller had a single floor, a maximum width of 4 meters, and a height of 4.5 meters.
The larger had two floors.
Each with a maximum width of 3.5 meters and a height of up to 4 meters.
The contract with Bolonha remained in force for five years.
During that period, the survival of the kiosks was supported by the city government through a full exemption from municipal taxes.
But on October 1, 1911, the kiosks were destroyed.
What happened that day can be reconstructed thanks to research by journalist Carlos Rocque, in his book Antônio Lemos and His Time.
By then, Lemos—nearly 70 years old, physically weakened, and politically worn out from his long time in power—faced hostility from a public stirred up by his opponents.
They were particularly outraged that Lemos had secured authorization from his party to run, unopposed, for a fifth term as mayor of Belém.
“Mocking and offensive leaflets targeting Lemos circulated widely throughout the city,” Rocque recounts.
Two days earlier, on September 30, 1911, prompted by this campaign, the public destroyed nearly all the hermetically sealed trash bins used by downtown merchants.
The city government had mandated their use for public health reasons.
The following day, September 31, a rally against Lemos in Praça da República further inflamed public sentiment.
On the morning of October 1, a riot of terrifying proportions swept through the neighborhoods of Umarizal, São Braz, Batista Campos, and Cidade Velha.
Fishmongers from the Ver-o-Peso market smashed the stalls and wagons of the American Vehicle Company—owned by Bolonha, who was seen by the populace as an ally of Lemos, according to Rocque.
At 6 p.m., the first kiosk was destroyed by around 100 workers from the port.
It stood at the corner of Boulevard Castilho França and Avenida Presidente Vargas.
The tenant tried to save it by locking himself inside.
He was nearly killed.
In that area—between Ver-o-Peso and Praça Visconde do Rio Branco—eleven more kiosks were torn down.
Some tenants managed to remove their goods before the structures were overturned and set ablaze.
But the destruction of the kiosk at Presidente Vargas and 28 de Setembro Street alone caused a loss of 250 thousand réis—a considerable sum at the time.
The rioters reached Largo de São Braz and attempted to attack the kiosk at the Bragança Railroad station.
There, they were driven back by railroad employees.
By 8 p.m., the destruction was still ongoing, reaching the kiosk in Praça Dom Macedo Costa.
This day of savagery finally came to a close, leaving behind a tragic toll.
Eleven months later, the wave of destruction reached Lemos’s home, his belongings, and his newspaper.
- Oswaldo Coimbra is a writer and journalista
(Illustration: The Bar do Parque kiosk. Photo by Rafaela Coimbra)