Cena de cidade grande brasileira: uma senhora acaba de sair da sala de coleta de sangue, num laboratório.
E se encaminha para a lanchonete do laboratório, a fim de quebrar seu jejum.
Ao lado dela, seu acompanhante, um senhor branco, de olhos claros, vestido confortavelmente.
Bermuda, e, camisa de meia com mangas curtas.
Um par de tênis, nos pés.
Simpático, ele elogia o pão de queijo da lanchonete, e, se dirigindo à funcionária que o serviu, garante que sabe fazer uma boa carne cozida.
Depois, conta para as pessoas que o rodeiam no balcão da lanchonete:
– Na última semana, pus doze ossos com tutano na panela, junto com a carne.
Depois, se volta exclusivamente para outro senhor de sua faixa etária.
E de modo espontâneo e amigável, se apresenta.
Diz-lhe que se chama Paulo, tem 67 anos de idade.
E, acrescenta:
– Três stents nas artérias do coração.
Depois, informa, com naturalidade:
– Aos 70 anos, quero decolar. Será bem-vindo um enfartezinho.
O outro homem retruca:
– Imagina! Hoje, as pessoas vivem mais de cem anos.
Paulo responde, rindo:
– Mas, para isto gastam todo o dinheiro que ganharam em suas vidas. Não quero isto. Já vivi bem, como advogado de uma empresa de energia elétrica.
Esta cena, banal na aparência, ocorrida há poucos dias, comprova, de modo absolutamente casual, a existência no Brasil de uma pessoa – pelo menos – liberta dos condicionamentos mentais sobre a morte impostos pela nossa cultura.
Condicionamentos tão entranhados em nós que somos levados a pensar que é natural enxergar a morte como um acontecimento trágico.
Quando ela não precisa ser vista assim.
Sobre este assunto, a TV Cultura de São Paulo produziu um primoroso vídeo, facilmente encontrável na internet.
Nele, o filósofo Daniel Lins aborda o tema “A morte como acontecimento”.
Daniel lembra que as crianças não se assustam com a morte.
Porque, supõem os adultos, elas não sabem o que a morte significa.
Isto os adultos supõem sem perceber que estão se aferrando à convencional visão dramática da morte.
E que a dramatização dela resulta dos condicionamentos a que são submetidos, dentro de nossa cultura pelo tipo de educação fornecida pelas instituições sociais – a família, a igreja e a escola – que determinam como devemos pensar sobre os temas fundamentais da existência humana.
O filósofo chamou a atenção, em sua palestra, para outra obviedade, também esquecida, a de que ninguém jamais experimentou a própria morte, antes de falar dela.
Quando falamos da morte, só nos referimos a algo ocorrido com outras pessoas.
Ora, o traço mais marcante da morte é a sua singularidade.
O sentido que ela tem é único porque decorre da vida de cada um de nós.
Ou melhor, decorre do modo como cada um de nós pôde viver a sua vida, dando um sentido a ela, e, por decorrência, à sua morte.
Na verdade, em última instância, se não morrêssemos nunca, todos os fatos de nossa vida perderiam o sentido que lhes atribuímos.