Impressiona, pela desfaçatez e cinismo, a desenvoltura criminosa do operador Nicolas Andre Tsontakis Morais, que também usava identidade falsa de Nicolas André Silva Freire, no esquema que desviou R$ 455 milhões dos cofres públicos – de um total de R$ 1,2 bilhão envolvendo outras falcatruas na área de saúde -, enquanto milhares de paraenses, entre 2019 e 2020, morriam atacados pela pandemia da Covid-19, sem respiradores, bombas de infusão, UTIs, leitos hospitalares e medicamentos para combater a doença.
Os ladrões festejavam o desvio de até 80% do dinheiro que deveria ter sido destinado para os hospitais de Belém, Santarém, Itaituba, Capanema, Castanhal, Breves e outros.
O relatório da Polícia Federal, cujo sigilo foi removido pelo juiz da 4ª Vara Federal de Belém, Antônio Carlos de Almeida Campelo, traz fatos capazes de indignar qualquer pessoa minimamente sensata que ler as mais de 500 páginas da investigação. Os recursos que serviriam para salvar vidas foram desviados para compra de apartamentos de luxo, fazendas de gado, terras, helicóptero, aviões, postos de combustíveis e carros com valores elevados, superiores a R$ 500 mil.
Tudo pago por meio de boletos, transferências bancárias e, para variar, malas e sacolas abarrotadas de dinheiro em espécie. Isso ocorria no mesmo instante em que pessoas desesperadas morriam nas filas e antessalas de hospitais públicos em busca de socorro médico. Parece que a ideia era roubar muito e rápido, enquanto o Pará inteiro só pensava e falava na Covid-19, tentando encontrar maneira de escapar dela.
“Da análise dos celulares apreendidos, com as conversas contidas em aplicativo WhatsApp há a presença de elementos mais que indiciários dos crimes investigados, além de robustez nos indicativos de lavagem de dinheiro”, afirma o relatório da PF.
O Ver-o-Fato separou alguns trechos dessas conversas – são muitas, várias delas estarrecedoras, revelando o modus operandi dos comparsas da organização criminosa. Essas conversas foram extraídas dos aparelhos celulares apreendidos em poder dos integrantes do esquema durante a Operação S.O.S, mas só agora vieram a público.
Nicolas André Tsontakis Morais, segundo o relatório da PF, “é o principal articulador financeiro do esquema criminoso, atuando não apenas nos desvios dos recursos públicos mas, especialmente, na lavagem de capitais, sendo considerado pela investigação como peça central para elucidação e desarticulação da estrutura criminosa, bem como para promover o rastreamento e devolução ao erário dos valores indevidamente locupletados”.
Vamos às conversas relatadas pela PF:
No dia 14 de julho de 2020, Nicolas André – que está preso desde a última quarta-feira, 18 – encaminha áudio para Manoel Rodojalma Medeiros de Lima – solto, mas proibido pela justiça Federal de manter contato pessoal ou por meio de telefone e mensagens de aplicativos com outros investigados, especialmente Nicolas, de quem era o gerente na movimentação do dinheiro publico desviado -, pedindo para que ele entre em contato com Gilberto Torres Alves Júnior, para que este transferisse recursos do (Instituto Panamericano de Gestão (IPG) para Nicolas.
Em seguida, Manoel encaminha a Nicolas o comprovante de transferência bancária no valor de R$ 401.100,00 movimentados da conta do IPG para a da empresa Minotauro, de propriedade de Nicolas. No extrato bancário é possível ver que o responsável pela operação foi Gilberto. De acordo com a PF, ele era à época o responsável financeiro do IPG e tinha “função de destaque no âmbito da organização criminosa à medida que possuía livre disposição da movimentação financeira do IPG”.
Afirma ainda a PF: ” os elementos informativos presentes na investigação demonstram, com veemência, que Gilberto é diretamente subordinado a Nicolas, obedecendo suas ordens e prestando conta da movimentação financeira do IPG, além de efetuar repasses para a organização criminosa”.
E mais: ” ressalta-se que, pelo teor e circunstâncias que envolvem o diálogo, há fortíssimos indícios de que estes valores foram desviados ilicitamente, pois a Minotauro não possui qualquer contrato com a OS que justifique o repasse “.
Nicolas – (transcrição de áudio): ” vê se ele consegue mudar, de 4, para 4 e 500 tá, pra eu fazer outras coisas”.
Nicolas – (transcrição de áudio): “pra ele apressar lá com esse dinheiro, que seu amigo aqui está agoniado que essa conta estourada”.
Manoel – (transcrição de áudio): não vai dar não esse valor, não vai dar não. Só vai dar aquele mesmo que ele já tinha te dito. Que ele disse que vai ficar o valor do imposto lá, tá”.
Os dados das conversas foram extraídos do aparelho celular apreendido em poder de Manoel. Outra prova de que Nicolas é o real proprietário da empresa Minotauro, diz a PF, é o fato de que, no dia 03 de agosto de 2020, ele envia para Manoel uma foto de cheque da empresa, no valor de R$ 50.000,00, constando a assinatura do próprio Nicolas, bem como um comprovante de transferência de R$ 200.000,00 da conta da empresa.
Em outro diálogo, é possível depreender, com clareza, segundo a investigação, que o dinheiro público destinado à saúde “era desviado e, parte significativa, passava pela conta da Minotauro”. No dia 01 de agosto de 2020, o IPG recebeu do Governo do Estado do Pará a quantia R$ 2.100.001,00 referente ao Hospital Regional de Breves no Marajó e R$ 4.200.001,00 referente ao contrato do Hospital de Santarém.
Dois dias depois, em 03 de agosto de 2020, Manoel manda mensagem para Nicolas informando do recebimento dos valores pelo IPG. Nessa ocasião, Nicolas pede para Manoel dizer a Gilberto que dos seis milhões repassados pelo Governo do Estado ao IPG, cinco milhões já estavam “comprometidos” e, por isso, o hospital deveria ser gerido apenas com um milhão de reais. Dessa forma, observa-se que mais de 80% do valor repassado à Organização Social seria desviado para a conta da Minotauro.
“A gente vai usar no mínimo R$ 5 milhões desse dinheiro”
Nicolas – (transcrição de áudio): “chega com ele amanhã cedo, dizendo ‘chefe só para começar a semana ele tem 3 milhões a 4 milhões para cobrir, essa semana já tem transferência feita com o agendamento para quarta-feira de 1 milhão e 200, e tem mais 800 mil cheque e tem outro agendamento para quinta-feira de dois milhões’. Dessa vez a gente vai usar no mínimo uns 5 milhões desse dinheiro, entendeu Manoel, não gasta nada. Vai ficar em um milhão para pagar as besteirinhas enquanto sai o resto do dinheiro, mas 5 milhões tá comprometido desde já. Tá aqui os cheques, está aqui os agendamentos que ele fez. Ele foi para Brasília diga assim pro Gil (Gilberto, do IPG), bora fazer tudo pela Minotauro mesmo né, não tem outra”.
Sobre essas mensagens, Manoel esclareceu à Policia Federal: “o interrogado foi solicitado a esclarecer conversas existentes no aparelho telefônico apreendido de Nicolas durante a operação S.O.S; que perguntado sobre uma conversa de 4/08/2020, entre o interrogado e Nicolas, o mesmo informou que a conversa dizia respeito a um pedido de Nicolas ao interrogado, solicitando que o interrogado entrasse em contato com Gilberto Torres Alves Júnior para que Gilberto repassasse a Nicolas certos valores; que mostrada a foto de Gilberto Torres Alves Júnior, procurador do Instituto Panamericano de Gestão – IPG, o interrogado o reconheceu como sendo o mesmo citado na conversa com Nicolas”.
Manoel prossegue o depoimento, informando que Nicolas e Gilberto “se encontraram por diversas vezes pessoalmente, inclusive no apartamento de Nicolas; que o interrogado acredita que Nicolas solicitou a sua intermediação com Gilberto pois apesar dos encontros, tentava evitar um contato direito com o mesmo; que o valor solicitado foi referente ao contrato do Hospital de Campanha de Santarém; que, segundo se recorda, o valor repassado ao IPG pelo Governo do Estado, foi de aproximadamente R$ 4.200.000,00 milhões e Nicolas estava exigindo o retorno de R$ 3.000.000,00 milhões; que Gilberto teria esclarecido ao interrogado que não havia como fazer o pagamento a Nicolas pois estava com os repasses da Sespa suspensos, mas que quando entrasse o recursos do Hospital de Itaituba, até o dia 12/08/2020, ele repassaria a Nicolas”.
Mais uma vez, em 12 de agosto de 2020, Manoel solicita a Nicolas dados de conta bancária para que Gilberto transferisse os valores do IPG para Nicolas, ocasião em que este diz ser melhor usar “a conta da Minotauro”.
Nicolas: “pode ser física ou jurídica tanto faz. É melhor na PJ, na Minotauro. Eu vou passar…se for na física eu vou ter que botar para Minotauro para cobrir um cheque”.
No dia 14 de agosto de 2020, outro diálogo mostra não somente a utilização da Minotauro para, como afirma a PF na investigação, “mais uma vez, propiciar a dissimulação nos valores ilicitamente desviados do IPG como, também, comprovam que os recursos desviados da saúde eram, infelizmente, superiores àqueles efetivamente utilizados. Na ocasião, Manoel repassa para Nicolas o que havia conversado anteriormente com Gilberto”.
A sangria dos hospitais: veja as entidades de onde os recursos foram desviados
No relatório, a PF aponta que os recursos desviados, totalizariam R$ 455.625.150,55 (quatrocentos e cinquenta e cinco milhões, seiscentos e vinte e cinco mil, cento e cinquenta reais e cinquenta e cinco centavos), “que seriam oriundos de repasses efetivados pelo Governo do Estado do Pará, por meio da celebração de contratos de gestão, nos anos de 2019/2020, às Organizações Sociais (Instituto Panamericano de Gestão (IPG), Associação da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Pacaembu, Instituto Nacional de Assistência Integral (INAI) e Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Birigui)”.
A finalidade desses recursos seria promover a administração de 9 hospitais, a seguir: Hospital Público Geral de Castelo dos Sonhos (Itaituba), Hospital de Campanha de Santarém, Hospital de Campanha de Breves, Hospital Regional Abelardo Santos (HRAS), Hospital de Campanha de Belém, Hospital de Campanha de Marabá, Hospital Público Regional de Castanhal, Hospital Público Geral de Castelo dos Sonhos, e Hospital Regional dos Caetes.