Dona Socorro já foi espancada e não quer voltar para Barcarena. Ela quer proteção. |
Bosco Martins diz que pistoleiros vigiam sua casa dia e noite. Já escapou de morrer. |
“Eu não tenho condições de voltar para a comunidade onde vivo, porque poderosos, com grandes negócios em Barcarena, querem me matar. Estou muito abalada com tudo isso”. O desabafo é da líder quilombola Maria do Socorro Costa da Silva, que esteve na redação do Ver-o-Fato para denunciar que, tanto ela, como o líder na Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf) em Barcarena, Bosco Martins Junior – cujo vídeo com a denúncia do atentado contra ele, semana retrasada, está disponível aqui no blog – estariam impedidos de retornar às suas residências por pistoleiros que querem eliminá-los.
Dona Socorro, como é conhecida na comunidade quilombola São Sebastião de Burajuba, relatou que está em Belém, para onde veio em busca de socorro, porque seus familiares, assim como os de Bosco, telefonam para dizer que carros e motocicletas, com homens mal encarados, passam a todo instante na frente das casas, durante a noite, como se estivessem preparando novos atentados.
Ela contou que semana atrás teve sua casa invadida e foi agredida fisicamente por homens armados, que a intimidaram, juntamente com seus familiares, apontando revólveres para suas suas cabeças. “Eles me deram socos na boca e me bateram. Ainda estou toda dolorida”, disse Socorro. As ameaças partem de grupos interessados nas terras onde a comunidade está localizada. Socorro é uma voz firme em defesa dos quilombolas que, iguais a ela, sempre viveram na área e de lá tiram o próprio sustento, seja da pesca ou da agricultura.
Ao tentar registrar o boletim de ocorrência da agressão que sofreu, dona Socorro tomou conhecimento, na delegacia de polícia da Vila dos Cabanos, que isso não seria possível porque o sistema “estava fora do ar”, de acordo com palavras da escrivã. Essa delegacia é comanda pela delegada Quésia Dórea, já denunciada pelo advogado Ismael Moraes à Delegacia Geral como uma das pessoas em Barcarena que teria feito “armações” contra Bosco e outras lideranças das localidades de Fazendinha e Laranjal para criminalizar a luta dos comunitários. Pessoas contratadas por mineradoras, o próprio prefeito de Barcarena, Antonio Carlos Vilaça, e empresas exportadoras de gado também estariam entre os responsáveis pelos atentados, segundo as vítimas. Uma investigação imparcial poria isso em pratos limpos.
A liderança quilombola e Bosco, que estiveram na redação do Ver-o-Fato, informaram que iriam conceder entrevista à Rede Record, que prepara matéria nacional sobre as perseguições, ameaças e atentados que ambos têm sofrido. “O governador Simão Jatene é o grande fiador da nossa segurança. Se alguma coisa de ruim acontecer conosco a polícia dele será responsabilizada, porque até agora nada fez para apurar quem são os autores desses atentados e quais os mandantes”, avisaram.
Providências
A assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública informou há pouco ao Ver-o-Fato que as denúncias feitas ao blog já estão sendo apuradas. A Delegacia do Interior deve tomar na manhã desta terça-feira os depoimentos de Bosco Martins Junior e de dona Socorro. Feito isso, outras providências devem ser tomadas.
O blog vai acompanhar – e cobrar – do governo, da Segup e da Polícia Civil uma investigação séria sobre as denúncias. O Ver-o-Fato não gostaria, em hipótese alguma, de relatar aqui a consumação de mortes anunciadas. Fato que, em outras oportunidades, colocaram o Pará no noticiário nacional e internacional como “terra da impunidade”, sem lei, sem ordem e de autoridades omissas.
Mas não deixará de fazê-lo se, tristemente, nada for feito para garantir a segurança de Bosco e dona Socorro.
Carta de Alforria
Em janeiro de 2014, as famílias da comunidade passaram a ser oficialmente
autodefinidas como quilombolas. A certidão de autodefinição, publicada
pela Fundação Cultural Palmares no final de 2013, foi entregue às
famílias em cerimônia promovida pela prefeitura local com a participação
da Superintendência do Patrimônio da União no Pará. A luta em favor dessa comunidade foi encampada pelo procurador da República, Felício Pontes Júnior, hoje atuando na Procuradoria-Geral da República, em Brasília.
autodefinidas como quilombolas. A certidão de autodefinição, publicada
pela Fundação Cultural Palmares no final de 2013, foi entregue às
famílias em cerimônia promovida pela prefeitura local com a participação
da Superintendência do Patrimônio da União no Pará. A luta em favor dessa comunidade foi encampada pelo procurador da República, Felício Pontes Júnior, hoje atuando na Procuradoria-Geral da República, em Brasília.
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Para a comunidade, foi uma grande vitória. A certidão atesta às
instituições e órgãos públicos que a comunidade se enxerga como
quilombola. É um reconhecimento das origens e dos direitos das famílias.
Além de possibilitar que a comunidade tenha acesso mais amplo a
políticas públicas, o reconhecimento é o primeiro e mais importante
passo para a obtenção da titulação das terras quilombolas, fornecida
pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). “É uma
verdadeira carta de alforria. É o reconhecimento de que eu não sou
invasora, sou quilombola”, disse dona Socorro, na ocasião.
instituições e órgãos públicos que a comunidade se enxerga como
quilombola. É um reconhecimento das origens e dos direitos das famílias.
Além de possibilitar que a comunidade tenha acesso mais amplo a
políticas públicas, o reconhecimento é o primeiro e mais importante
passo para a obtenção da titulação das terras quilombolas, fornecida
pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). “É uma
verdadeira carta de alforria. É o reconhecimento de que eu não sou
invasora, sou quilombola”, disse dona Socorro, na ocasião.
O processo teve início no ano passado. Em 2013, a comunidade entrou
em contato com a Universidade Federal do Pará (UFPA) e solicitou à
professora Rosa Acevedo Marin, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos
(Naea), apoio na produção de estudo que registrasse a história das
famílias de Burajuba. A pesquisa histórico-antropológica foi realizada
em Belém e em Barcarena. Na capital a pesquisa de fontes documentais foi realizada na Fundação
Cultural do Pará Tancredo Neves, na Comissão Demarcadora de Limites, no
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e na biblioteca
do Naea.
em contato com a Universidade Federal do Pará (UFPA) e solicitou à
professora Rosa Acevedo Marin, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos
(Naea), apoio na produção de estudo que registrasse a história das
famílias de Burajuba. A pesquisa histórico-antropológica foi realizada
em Belém e em Barcarena. Na capital a pesquisa de fontes documentais foi realizada na Fundação
Cultural do Pará Tancredo Neves, na Comissão Demarcadora de Limites, no
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e na biblioteca
do Naea.
Em Barcarena foram feitas entrevistas gravadas e trabalhos de
georreferenciamento, registra relatório da pesquisa enviada à Fundação
Cultural Palmares. A pesquisadora Rosane Maia, que participou da
elaboração dos estudos, também esteve presente na cerimônia do último
sábado. O reconhecimento como quilombolas pode ser também um passo gigantesco
em relação a uma luta que dura quatro décadas contra a empresa
Companhia de Desenvolvimento de Barcarena (Codebar), que reivindica as
terras. Em 2008 o Ministério Público Federal no Pará chegou a entrar com
um pedido de medida cautelar à Justiça Federal para que fosse impedida a
venda das terras dos ribeirinhos da comunidade de Burajuba pela
Codebar.
georreferenciamento, registra relatório da pesquisa enviada à Fundação
Cultural Palmares. A pesquisadora Rosane Maia, que participou da
elaboração dos estudos, também esteve presente na cerimônia do último
sábado. O reconhecimento como quilombolas pode ser também um passo gigantesco
em relação a uma luta que dura quatro décadas contra a empresa
Companhia de Desenvolvimento de Barcarena (Codebar), que reivindica as
terras. Em 2008 o Ministério Público Federal no Pará chegou a entrar com
um pedido de medida cautelar à Justiça Federal para que fosse impedida a
venda das terras dos ribeirinhos da comunidade de Burajuba pela
Codebar.
A venda das terras ameaçava a integridade territorial de uma
população que o MPF entendia ser protegida pela Constituição, incluída
nos critérios da Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. A disputa com a empresa começou por volta de 1984, quando a Codebar
entrou no local, tomando posse das terras para formar o Distrito
Industrial. É uma história tipicamente amazônica, no que tem de
simbólico em relação à posse, ocupação de terras e poder econômico
sobrepujando comunidades tradicionais.
população que o MPF entendia ser protegida pela Constituição, incluída
nos critérios da Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. A disputa com a empresa começou por volta de 1984, quando a Codebar
entrou no local, tomando posse das terras para formar o Distrito
Industrial. É uma história tipicamente amazônica, no que tem de
simbólico em relação à posse, ocupação de terras e poder econômico
sobrepujando comunidades tradicionais.
O relato feito pelos moradores em ofício encaminhado à Justiça
Paraense em agosto de 2008 é revelador dessa situação. Diz o texto: “em 1980, recebemos uma comissão do Iterpa, para que fizéssemos um
novo cadastro no órgão, a fim de recebermos o título definitivo de posse
de nossas áreas. Passaram-se três meses, como combinado, uma comissão
foi até o Iterpa. Lá fomos recebidos pelo doutor Cezar Bentes, que nos
deu a notícia de que nossas terras tinham sido vendidas para o Distrito
Industrial.
Paraense em agosto de 2008 é revelador dessa situação. Diz o texto: “em 1980, recebemos uma comissão do Iterpa, para que fizéssemos um
novo cadastro no órgão, a fim de recebermos o título definitivo de posse
de nossas áreas. Passaram-se três meses, como combinado, uma comissão
foi até o Iterpa. Lá fomos recebidos pelo doutor Cezar Bentes, que nos
deu a notícia de que nossas terras tinham sido vendidas para o Distrito
Industrial.
Ele mandou que esperássemos para que fôssemos indenizados.
Neste mesmo período chegaram as empresas abrindo as ruas e destruindo
tudo o que estava na frente. Os funcionários da Codebar diziam que
tínhamos de colaborar com o governo doando nossas terras, que seriam
propriedade da União, para o Projeto Industrial e que só teríamos o
direito de receber a indenização de nossas benfeitorias. Deram um prazo
de uma semana para que 44 famílias fizessem o levantamento das
plantações e benfeitorias”.
Neste mesmo período chegaram as empresas abrindo as ruas e destruindo
tudo o que estava na frente. Os funcionários da Codebar diziam que
tínhamos de colaborar com o governo doando nossas terras, que seriam
propriedade da União, para o Projeto Industrial e que só teríamos o
direito de receber a indenização de nossas benfeitorias. Deram um prazo
de uma semana para que 44 famílias fizessem o levantamento das
plantações e benfeitorias”.
“Já morávamos aqui. Temos certidões desde 1964. Essas terras eram dos
nossos bisavós, que deixaram para os nossos avós, que deixaram para
nossos pais e que pretendemos deixar para nossos filhos”, dizia Raimundo
Amorim de Barros, hoje com 60 anos. Cerca de 50 famílias -das 500 originais- vivem no local. É uma área
ainda extensa, mas que já foi muito mais. O rio Murucupi, que passa aos
fundos, foi contaminado por diversas empresas. “A gente vivia do
camarão, do peixe, do que plantávamos. Não precisávamos de nada. Agora
não se pode mais pegar nada desse rio”, diz Clarivaldo do Amorim
Brandão, 50 anos, irmão de Raimundo Amorim.
nossos bisavós, que deixaram para os nossos avós, que deixaram para
nossos pais e que pretendemos deixar para nossos filhos”, dizia Raimundo
Amorim de Barros, hoje com 60 anos. Cerca de 50 famílias -das 500 originais- vivem no local. É uma área
ainda extensa, mas que já foi muito mais. O rio Murucupi, que passa aos
fundos, foi contaminado por diversas empresas. “A gente vivia do
camarão, do peixe, do que plantávamos. Não precisávamos de nada. Agora
não se pode mais pegar nada desse rio”, diz Clarivaldo do Amorim
Brandão, 50 anos, irmão de Raimundo Amorim.
No meio da mata, há restos do que era o centro da comunidade. Uma
escola e uma igreja centralizavam a vida da comunidade. Na igreja,
quatro santos eram venerados em quatro festas anuais. A de Santa Ana,
São Sebastião, Nossa Senhora das Graças e São Tomé, a maior de todas.
Cada santo tinha uma imagem que ficava com uma família da comunidade. Em
1984, a professora Judite de Souza Lemos teve que correr com os alunos
quando dava aula porque as máquinas da empresa vieram para derrubar
tudo. Da escola, Judite foi para a igreja. Não adiantou. Hoje só há
ruínas lembrando o episódio.
escola e uma igreja centralizavam a vida da comunidade. Na igreja,
quatro santos eram venerados em quatro festas anuais. A de Santa Ana,
São Sebastião, Nossa Senhora das Graças e São Tomé, a maior de todas.
Cada santo tinha uma imagem que ficava com uma família da comunidade. Em
1984, a professora Judite de Souza Lemos teve que correr com os alunos
quando dava aula porque as máquinas da empresa vieram para derrubar
tudo. Da escola, Judite foi para a igreja. Não adiantou. Hoje só há
ruínas lembrando o episódio.
Judite Lemos tem hoje 60 anos e nove filhos. É uma mulher pequena, de
passos miúdos e rápidos. Conhece como poucos as histórias da
comunidade. Guarda papéis que comprovam a existência das famílias de
Bujaruba. São certidões de nascimento, batizado, casamentos, com datas
dos anos 60, 70, 80. Um exemplo é a certidão de um dos filhos, Renato
Júnior de Souza Lemos, registrado no dia 30 de março de 1977. O local do
nascimento é a comunidade de Bujaruba, registra o documento.
passos miúdos e rápidos. Conhece como poucos as histórias da
comunidade. Guarda papéis que comprovam a existência das famílias de
Bujaruba. São certidões de nascimento, batizado, casamentos, com datas
dos anos 60, 70, 80. Um exemplo é a certidão de um dos filhos, Renato
Júnior de Souza Lemos, registrado no dia 30 de março de 1977. O local do
nascimento é a comunidade de Bujaruba, registra o documento.
As ameaças de empresas
Segundo o MPF, na área central da Vila dos Cabanos, região nobre do
município, parte da comunidade foi removida para casas de madeira em um
bairro de periferia chamado Laranjal, a troco de indenizações que muitos
sustentam não terem sido pagas. Como o dinheiro era insuficiente e as cerca de 50 famílias estavam
habituadas a viver de roça, pesca e coleta, muitos moradores de Burajuba
não conseguiram se adaptar ao ambiente urbano e retornaram às terras, o
que gerou conflito com a extinta Codebar.
município, parte da comunidade foi removida para casas de madeira em um
bairro de periferia chamado Laranjal, a troco de indenizações que muitos
sustentam não terem sido pagas. Como o dinheiro era insuficiente e as cerca de 50 famílias estavam
habituadas a viver de roça, pesca e coleta, muitos moradores de Burajuba
não conseguiram se adaptar ao ambiente urbano e retornaram às terras, o
que gerou conflito com a extinta Codebar.
“Burajuba é um caso emblemático de como os grandes projetos
implantados na Amazônia simplesmente negaram a realidade do povo que
vive aqui”, diz o procurador da República Felício Pontes Jr. O reconhecimento da comunidade como quilombola foi comemorado como
uma grande vitória. “É a justiça começando a ser feita”, disse o morador
de Burajuba Eduardo Cravo. A comunidade ainda enfrenta litígios com outras empresas, também de olho nas terras quilombolas.
implantados na Amazônia simplesmente negaram a realidade do povo que
vive aqui”, diz o procurador da República Felício Pontes Jr. O reconhecimento da comunidade como quilombola foi comemorado como
uma grande vitória. “É a justiça começando a ser feita”, disse o morador
de Burajuba Eduardo Cravo. A comunidade ainda enfrenta litígios com outras empresas, também de olho nas terras quilombolas.
As ameaças e os atentados a bala dos últimos dias, contudo, demonstram que a situação mudou. Para pior.
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