Na porteira da fazenda Cedro, homens armados vigiam o local
No cemitério de Curionópolis, 14 dos 19 mortos no massacre
O jornal “O Estado de São Paulo”, do qual sou correspondente no Pará há 21 anos, ainda mantém sua essência de produzir boas reportagens pelo Brasil afora. Essa produção já foi bem mais intensa. Mas, especialmente na última década, começou a cair, seja porque o jornal se tornou um jornal mais paulista do que nacional, seja porque suas sucessivas crises financeiras agravaram-se.
E como sempre ocorre nas empresas jornalísticas, na hora do enxugamento de custos sobra para a Redação. Repórteres, redatores e fotógrafos perdem o emprego e as chamadas pautas especiais – com suas longas viagens pelo Brasil em busca de assuntos polêmicos, restritos às fronteiras regionais – encolhem de forma lamentável, privando os leitores de boas informações.
Diante de tantas dificuldades, contudo, o “Estadão” ainda é um dos poucos grandes veículos de comunicação nacional impresso – senão o único na atual conjuntura – a deslocar repórter, fotógrafo e cinegrafista para mostrar o Brasil de tantos contrastes, violência e omissão das autoridades.
Foi o que fizeram, desde fevereiro passado, o repórter Leonêncio Nossa e o fotógrafo Dida Sampaio – com quem já fiz grandes matérias sobre o Pará e a Amazônia – mobilizados pelo “Estadão” para percorrer o Norte e o Centro-Oeste do país. O resultado desse belo trabalho começou a ser publicado desde a semana passada e revela um Brasil que, nessas duas regiões, continua o mesmo, com seus violentos conflitos pela posse da terra, a destruição de florestas para o comércio ilegal de madeira e a lei feita a bala pelos detentores do poder econômico.
No caso do Pará, Leonêncio Nossa e Dida Sampaio mostram como estão os sobreviventes do massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, as milícias privadas que dominam o sudeste e o sul do Estado, além da situação em Anapu, onde em 2005 pistoleiros a mando de grandes fazendeiros assassinaram a tiros a missionária norte-americana naturalizada brasileira, Dorothy Stang.
A reportagem de Leonêncio Nossa e Dida Sampaio
“Uma das mudanças na política do campo na Era Lula e Dilma (PT) foi a criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que disponibilizou para a safra 2015/ 2016 R$ 28,9 bilhões. É uma linha de crédito que não existia no tempo do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Além disso, o Executivo deixou oficialmente de criminalizar os movimentos de pequenos agricultores. A lição de barbárie de Eldorado do Carajás, porém, não trouxe mudança real à questão da violência. As polícias deixaram de atuar, sob certa medida, na repressão a ativistas, mas o espaço seria ocupado por milícias contratadas por grileiros.
Do massacre de Eldorado até hoje, 197 pessoas foram assassinadas em conflitos no sudeste e sul do Pará. Um dos focos de tensão fica a 40 quilômetros da Curva do S. Famílias de sem-terra disputam a posse da Fazenda Cedro, de 8,3 mil hectares, sendo 80% da União. Histórias de terror marcam o Acampamento Helenira Resende, nome de uma guerrilheira morta pelo Exército em 1972. Ali vivem 450 famílias. A maioria dos adultos trabalha como peão e consertador de cercas nas fazendas próximas.
Em março de 2015, Francinaldo Souza da Costa, de 25 anos, pescava com outros três sem-terra numa grota, na divisa com a fazenda. Ele conta que seis homens armados da empresa Atalaia Segurança e Vigilância chegaram em um Fiat Uno e uma caminhonete. “Eles desceram dos carros. Mandaram fogo.” Pelo relato dele, um dos agentes atirou no chão próximo de onde estava o grupo e uma das balas bateu numa pedra e acertou a lente esquerda dos óculos que ele usava. A lente foi para trás e atingiu sua vista. Ele perdeu a visão do olho esquerdo.
O episódio ficou registrado nos celulares dos sem-terra. Francinaldo está há dois anos no acampamento. Estudou até a oitava série do primeiro grau. Aos 5 anos, perdeu o pai, Compertino da Costa, goiano que chegou ao Pará nos anos 1970, morto a mando de um fazendeiro de Quatro Bocas, município de Itupiranga. A mãe, Emília Coelho de Souza, criou cinco filhos em assentamentos.
As terras do sudeste paraense são vigiadas agora por homens de empresas de segurança legalizadas pela Polícia Federal. No Pará de 2016, uma empresa de serviço de escolta armada se destaca no trecho entre Anapu e Eldorado do Carajás. Criada em 2002 em Araguaína, Tocantins, por Renê Rodrigues de Mendonça, um agente federal aposentado, a Atalaia Segurança e Vigilância domina o mercado de escolta de fazendeiros e grileiros. Antônio Lopes de França Filho, de 25 anos, líder do MST no Pará, dá o tom do relacionamento dos posseiros com os funcionários da empresa. “A escolta é a verdadeira pistolagem que tem liberação para matar”, acusa.
Camponeses relatam que, em agosto de 2009, seguranças da empresa mataram Wagner Nascimento Silva. Em outubro, a escolta da Atalaia e os sem-terra trocaram tiros por 20 minutos. A equipe de reportagem esteve na porteira da Cedro. Três homens fortemente armados chegaram logo depois numa caminhonete. Eles permitiram a entrada no local, que guarda marcas do último tiroteio. Foi possível ver casas e cercas destruídas.
Um dos homens diz que o grupo está ali por causa dos bois. Seriam cerca de 10 mil cabeças. “A gente quer controlar a situação, a gente não quer matar”, afirma um deles. “O tiroteio foi mais ou menos à 1h30 da madrugada, não dava para enxergar nada”, diz, referindo-se à disputa de outubro. “Eles chegaram atirando, a gente só respondeu.”
A Cedro era área de concessão do governo estadual para retirada de castanha. Benedito Mutran, do clã que dominou o mercado de amêndoas entre 1950 e 1980, cortou as castanheiras e criou gado. O governo do Estado nunca se opôs à mudança de exploração da terra. Benedito vendeu a Cedro para o banqueiro Daniel Dantas. Por um capricho da história, Dantas teve como advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, ex-deputado do PT que no passado defendeu famílias de guerrilheiros, sindicalistas e camponeses assassinados nas terras que hoje são apostas do banqueiro no negócio da mineração.
A Atalaia também é alvo de denúncias em outro foco de conflito no campo, a quase seis horas de viagem de carro e 464 quilômetros de asfalto e trechos de terra a partir de Marabá. Em Anapu, município onde a missionária americana Dorothy Stang foi assassinada, em 2005, a empresa é citada pelo grupo da religiosa como prestadora de serviços para Debs Antonio Rosa, um fazendeiro que diz ser o proprietário do Lote 83, local de pelo menos cinco assassinatos em 2015.
À reportagem, o dono da Atalaia, Renê Rodrigues de Mendonça, negou que seus seguranças tenham atirado contra camponeses do Acampamento Helenira Resende, na região onde atua há cerca de cinco anos. A respeito da atuação em Anapu, Renê disse que sua empresa prestou serviços por apenas dois meses na área. Sobre o assassinato de Wagner Nascimento Silva em 2009, declarou que um inquérito sobre o caso corre em Curionópolis e que já esteve presente em três audiências conduzindo os agentes que, naquela ocasião, prestavam serviços na Fazenda Cedro. “A perícia técnica vai comprovar que nossos seguranças não causaram a morte do Wagner”, disse.
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